Nada de novo no front (mais uma vez)

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  • Paulo Sales

Publicado em 21 de março de 2022 às 05:04

- Atualizado há 10 meses

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Bertolt Brecht tem um poema bem conhecido, chamado Perguntas de um Operário que Lê, no qual enumera grandes feitos e conquistas da história humana, atribuídos aos homens que lideraram essas empreitadas. Em seguida, Brecht questiona se apenas eles mereciam os louros da vitória: “Quem construiu Tebas, a das sete portas? / Nos livros vem o nome dos reis, / Mas foram os reis que transportaram as pedras?”. Ou: “Frederico II ganhou a guerra dos sete anos. / Quem mais a ganhou?”

Assim como nas grandes conquistas, também nas grandes derrotas não são só os líderes que sucumbem. Muitas vezes eles sequer perdem a vida, apenas o poder. Em compensação, os anônimos – aqueles que carregam pedras ou se lançam ao campo de batalha – acabam sempre sacrificados. No caso das guerras, nem só eles. Toda uma gente é tragada para dentro do horror, mesmo quem sempre se manifestou contra o horror ou não tem a menor consciência do que ele significa.

Hoje as imagens nos chegam da Ucrânia, como em outros tempos chegaram da Alemanha, de Ruanda ou do Japão – as do Iêmen sequer chegam: seus mortos são invisíveis aos olhos do Ocidente. Prédios destroçados, cidades dizimadas, vidas trucidadas, multidões exiladas. O devastador poderio bélico da Rússia, a serviço de um autocrata sem escrúpulos, avança sobre território ucraniano. Já vimos esse filme e sabemos como acaba.

À sensação de impotência, somam-se o enfado, a exaustão, o desespero. Ao longo de séculos a Europa gestou o horror, forjou-se nele, mergulhou seu território em sangue e ossos. Para nós, os nascidos depois de 1945, a relativa paz por lá pode parecer um conceito sólido e duradouro. Mas em toda a história europeia ela representou apenas breves intervalos de descanso, enquanto o tabuleiro se reorganizava para uma nova partida. Quer intervalo mais breve que os 21 anos que separam o fim da primeira guerra do início da segunda?

Vladimir Putin é apenas um pupilo dos grandes senhores da guerra, como Hitler e Stálin. Nem entro aqui no mérito do conflito, se há ou não motivações legítimas para que ele aconteça. Se EUA, OTAN e Ocidente têm responsabilidade total ou parcial nessa história. Apenas não nutro simpatia por ditadores, não importa para qual lado eles pendem. E Putin é um ditador.

Não, isso não justifica o que outros déspotas e nações fizeram e ainda fazem em outros cantos do mundo, que fique bem claro. Não existem santos entre os que movem as peças nessa guerra no leste europeu. Como não houve nas demais, salvo raríssimas exceções.

Lembro do horror que senti ao ler os relatos sobre a guerra da Bósnia, até então a última a assolar o continente. Foi um conflito estúpido, violentíssimo, com crimes contra a humanidade cometidos em escala industrial. Estávamos nos estertores do século 20 e parecia não ter havido qualquer aprendizado, qualquer conscientização do que representa lançar mísseis sobre hospitais, bombardear cidades ou fuzilar civis e enterrá-los em covas rasas. Penso comigo: não há remorso ou sofrimento íntimo quando se ordena e executa atos tão bárbaros?

Se não bastassem as reportagens e os livros de história, há a literatura para eternizar e nos mostrar o terror absoluto de um conflito bélico. De Remarque a Grossman, de Mailer a Vonnegut, de Hemingway a Sartre, os testemunhos se acumulam. Mas não servem de nada, não há nada de novo no front. A guerra pertence à nossa essência como espécie.

Há quem a romantize e enxergue nela bravura e heroísmo. Eu só consigo vislumbrar barbárie, medo e devastação. Causa alguma justifica uma morte, muito menos milhares. Mortes que atingem a vítima e seus parentes mais próximos, deixando intacta a Grande História. Em quase todas as guerras, combatentes e civis caem em seqüência como peças de dominó, sem que exista algum sentido ou justificativa plausível.

Cada nação é dona do seu próprio estorvo, do seu próprio carma. A trajetória do homem sobre a Terra é, basicamente, uma trajetória de extermínio. E todos os povos têm a sua parcela de responsabilidade sobre o sangue alheio derramado no decorrer dos milênios. Infelizmente, não é a nossa geração – e creio que nem as próximas – que vai assistir à estiagem desse sangue.