Nenhum homem indica Maid, a série da Netflix

Se eu senti o clichê "soco no estômago", talvez, para a maioria deles, seja um belo chute no saco

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  • Da Redação

Publicado em 16 de outubro de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

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Faz tempo que dei uma enjoada das coisas "para mulheres" ou que falam do "universo feminino". Sei lá, acho que já vi e vivi demais isso. Daí, fui deixando passar até que soube que são só dez episódios e pensei que podia ser a chance de terminar uma série, coisa que não faço desde que maratonei Prison Break, muitos anos atrás, quando ainda nem se usava a palavra "maratonar", nesse sentido. 

Maid (Netflix) é a aventura de Alex, uma mulher que sai de casa, durante uma madrugada, com a filha de dois anos no colo, fugindo de um marido alcoólatra que esmurrava paredes e quebrava coisas, quando bêbado. A escritora Martha Medeiros avisou que cada episódio é uma sessão de terapia e quase todo dia uma mulher diz "assistam", nas redes sociais. Quando é assim, melhor escutar.

Olhe, agora vai começar a rolar spoiler e você ainda pode desistir de ler, mas eu não posso deixar de dizer que tava achando tudo chato e óbvio até a hora em que o boneco da menina (eu vi um unicórnio, mas Leo disse que era uma sereia) voa pela janela do carro, numa estrada escura. A menina começa a chorar, a mãe para o carro no acostamento e sai correndo pra catar o boneco ("coisa-mais-importante-do-mundo") no mato. Aí, quem começou a chorar fui eu ("que foi, mãe?", perguntou meu filho e eu "é a série, relaxe") e só fui parar quando, bem depois, nossa personagem principal, escuta de uma amiga "você precisa começar a sentir raiva". 

(Precisamente, depois de ela perder a guarda da filha, numa audiência em que o fato de terem batido no carro parado no acostamento, enquanto ela catava o unicórnio/sereia, pesou como uma imensa irresponsabilidade. A batida no carro, portanto, marca a virada para uma fase ainda mais difícil na vida de Alex.)

Quando eu disse "é a série, relaxe" pro meu filho, foi mentindo descaradamente. Nenhum choro é de alegria, assim como nenhum choro é "da série", "do filme", "do livro" ou "da música". É tudo a nossa dor, a nossa falta. Evidentemente, eu chorei, ali, pelas tantas vezes em que andei correndo atrás de unicórnios e sereias, sem me dar conta do quanto construía, assim, o meu próprio desamparo. É, também, por sempre (e não importa o quando você seja foda) voltar pra resgatar unicórnios e sereias que mulheres tentam, em média, sete vezes até conseguir sair de um relacionamento indesejado. Indo e voltando com saudades de ternuras, enquanto todos (a polícia, a família, as amigas e, principalmente, o "amado") só enxergam, em resumo, uma "otária".

(A gente fica lá sendo trecho de poema de Manoel de Barros.)

("Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença.") 

(Amamos os restos, como as boas moscas.)

A ternura nos atrai como uma cenoura na frente do nariz e aquele não é o único momento da série no qual a personagem se lasca toda porque acha que deve voltar pra buscar o que ficou no caminho. A metáfora apresentada ali (ou, pelo menos, vista por mim) permanece até o fim, de diferentes formas. Alex se ferra, muitas vezes, porque não consegue "abandonar", esse verbo tão facilmente (e de tantas maneiras) exercido pelo masculino e que temos tanto medo de conjugar. 

Homens, na maioria das vezes, não voltam pra buscar sereias e unicórnios que voam pelas janelas dos carros. Essa, talvez, seja uma das poucas coisas a aprender com eles, só (mas não apenas) de raiva: a praticidade com que descartam os afetos quando se sentem vulneráveis. Num instante se desconectam, se armam, se protegem e observe o pelotão que acompanha o ex-marido na audiência sobre a guarda da garota. Alex, por sua vez, estava sozinha, ainda se sentindo segura pelo fio invisível feito de embalos na rede, risadas juntos, descobertas mútuas e alegrias. Ainda apostando na confiança tecida pelo amor no qual acreditava, apesar de. Exatamente como fazemos, em tantas situações. Nunca dá certo, pode apostar.

É exaustivo, sabe? E perigoso. Talvez a gente precise aprender a ser quem abandona, quem desiste, quem pega a estrada, quem se arma primeiro. Sem culpa, sem se achar irresponsável, sem pensar que, com isso, traiu histórias e abortou felicidades. Mulher não precisa ser sempre quem varre o lixo da festa, quem propõe a "conversa final", quem dá a "última chance", quem volta e pergunta "tem certeza de que vamos jogar isso fora?". Por que tem que ser a gente? Que mal há em trocar de lugar? 

Esse foi o meu insight (por fim, achei mesmo que a série é terapêutica) e cada uma vai ter o próprio ou nenhum, como a moça que me disse "já tô tão calejada que assisti e não senti nada". Pode acontecer. Ou, talvez, seja o jeito dela de dizer que já consegue ter incorporada a raiva necessária pra endurecer e agir em legítima autodefesa e proteção, ao primeiro sinal de ameaça. Aí, a pessoa nem acha mais emoção na história que se repete em quase todas as desconstruções afetivas heteronormatizadas, principalmente naquelas que envolvem filhos/as, audiências e tals. Já entendeu que não existe "minha história é especial". Que, no fim, é vala comum e quanto mais rápido você entender isso, menos vai se machucar. Fodam-se os unicórnios e as sereias. Essa é a lição. 

Assista, se você é uma mulher. Sendo mãe solo, indico ainda mais. Se em processo de separação, vai te deixar mais ligada, tomara. A série é importante, ainda que não genial. Além das sereias e os unicórnios, observe que todas (todas!) as dificuldades da personagem principal são derivadas de contextos que privilegiam o masculino, em nível pessoal ou coletivo. Ainda que, também na série, "nem todo homem", aquela é a história de uma mulher, presa a diversos afetos, sendo abusada, em vários âmbitos, enquanto cumpre o que o masculino, historicamente, nos propõe: cuidar, suportar, entender, insistir, resolver, estruturar, escutar, esperar e silenciar. 

Uma última coisa e isso é bem importante: Alex é a personagem mais fragilizada da série,  mas é demandada, das mais diferentes maneiras, por todos os outros personagens. Todos lhe "pedem" coisas e apenas em um momento alguém pergunta: "como você está"? Ao que ela responde "eu não sei direito o que aconteceu comigo", tentando fazer uma piada, rindo meio boba, atordoada. Quantas vezes, ao longo da vida, se alguém quisesse, de fato, saber, você responderia assim? Eu, várias. É que raramente nos perguntam, repare. Pelo menos de verdade. A propósito, nenhum homem indica Maid, em artigos ou posts nas redes sociais. Entendo, até. É que, se eu senti o clichê "soco no estômago", talvez, para a maioria deles, seja um belo chute no saco.