'Norte da Bahia já possui características de semideserto', diz referência em clima

Confira entrevista com o cientista Carlos Nobre

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Publicado em 25 de agosto de 2019 às 04:48

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mauro Akin Assor/CORREIO
Aquecimento é a explicação para tempestades mais frequentes e fortes por Foto: Almiro Silva

Na última semana, o Brasil se tornou o centro das atenções do mundo nas discussões sobre as mudanças climáticas. No Norte as chamas que varrem impiedosamente a Floresta Amazônica assombraram o planeta. Do outro lado do país, o mundo viu surgirem as  vozes da esperança. Salvador recebeu a Semana do Clima da América Latina e Caribe (Climate Week), onde alguns dos maiores especialistas em mudanças climáticas do mundo se uniram a gestores públicos, representantes do setor produtivo e da sociedade discutiram estratégias para conter o aquecimento global.  

Uma palavra intuitiva e, ao mesmo tempo, quase desconhecida para muitos, ganhou destaque durante os debates sediados na Semana do Clima: a “descarbonização”. Países como Colômbia, Argentina e Costa Rica apresentaram ações para alcançar o marco zero na emissão carbônica. A Costa Rica foi elencada como um exemplo, pois possui um Plano Nacional de Descarbonização com 10 setores definidos. 

Prefeitos dos principais municípios brasileiros destacaram a importância da participação das cidades na proteção da natureza e no cumprimento do Acordo de Paris – tratado mundial que tem o objetivo reduzir o aquecimento global e que foi aprovado em 2015 durante a COP-21 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, na capital francesa).

A Climate Week, organizada pela ONU e apoiada pela Prefeitura de Salvador, reuniu representantes de mais de 90 nações. O prefeito de Salvador, ACM Neto, anunciou no evento que irá enviar à Câmara de Vereadores nesta semana dois projetos de lei para proibir o uso de sacolas e canudos plásticos descartáveis por parte de pequenos, médios e grandes comerciantes da cidade. 

Cenário preocupante O climatologista e presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, Carlos Nobre, foi um dos participantes da Semana do Clima. Munido com dados que mostram a aceleração no processo de aquecimento do planeta, ele faz o alerta: “O aquecimento global é um fato incontestável”. Em entrevista para o CORREIO, ele apresenta um diagnóstico do cenário e aponta alternativas para que governos, atores econômicos e cidadãos contribuam para que o mundo continue a ser o lar dos homens por muito mais tempo. Aqui na Bahia, os efeitos já se mostram presentes na agricultura, no semiárido, que corre risco de se tornar um semideserto, além dos problemas urbanos. Numa cidade como Salvador, os problemas vão desde ondas de calor a tempestades cada vez mais frequentes e mais fortes. 

É um fato comprovado que o mundo está ficando mais quente?  Sim, não há nenhuma dúvida a respeito disso, as pesquisas mostram isso de uma maneira muito clara. O mundo está ficando mais quente. 

E por que é tão difícil para muita gente acreditar neste cenário?  O aquecimento global é um dado incontestável. Há algumas controvérsias em relação à responsabilidade por este processo. Existem pessoas que acreditam que o aquecimento não seria algo da responsabilidade dos seres humanos, mas um fenômeno natural. Existe uma minoria na comunidade científica que disputa isso. Globalmente falando, cerca de 70% das pessoas entendem que nós estamos causando o aquecimento do planeta, tem 25% que não tem certeza de que somos nós os causadores, mas também não tem a certeza de que é natural, enquanto 5% acreditam que se trata de um fenômeno natural, ou ainda que o planeta não está se aquecendo – é uma minoria muito pequena. 

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Como é este cenário aqui no Brasil?  No Brasil, o número de pessoas que julgam que o aquecimento global está sendo causado por nós chega perto de 90%, muito acima da média mundial.

Existem muitas nações que colocam a adequação dos meios de produção a uma economia de baixo carbono como um impedimento para a mudança. Qual vai ser o custo que iremos pagar pelas mudanças climáticas? Do ponto de vista econômico, hoje não há mais nenhuma dúvida de que se nós não conseguirmos parar o aquecimento global, se não obtivermos sucesso na implementação das metas do Acordo de Paris, o custo para a economia mundial será muito maior do que o da mudança. O custo aumenta muito quando nós pensamos nos riscos que nós corremos. Vamos pensar em um país como o Brasil.  Se não tivermos sucesso no Acordo de Paris, o Brasil que é uma potência agrícola, quinto maior produtor e o segundo maior exportador vai perder essa condição. Se o planeta continuar a se aquecer, vamos perder tudo. Nós já estamos no limite. 

O senhor pode ser mais específico? As culturas agrícolas não serão bem sucedidas, elas vão perder produtividade. Não há como criar culturas totalmente adaptadas a qualquer situação, então vai se chegar a uma realidade em que será inviável produzir. Nós teremos um desafio também para o sistema de saúde. O ambiente vai ficar muito quente. O nível do mar vai aumentar e isso vai alterar toda a linha costeira do mundo. Cerca de 25% da população mundial estão em áreas que poderão ser afetadas pelo aumento do nível do mar. Nós teríamos que pensar numa realocação de quatro bilhões de pessoas. Então, estamos falando em custos gigantescos, caso nós não tenhamos sucesso na implementação do acordo. Eu quero ressaltar que quanto mais demorar, maior será o custo de transição para uma economia de baixíssimo carbono, de zero carbono. 

Como seria esta transição? Atualmente, 60% do combustível utilizado no mundo é de origem fóssil. Mas se nós analisarmos, em todo o mundo, a energia solar e a eólica já bateram os custos de produção da energia térmica. No Brasil, nós conseguimos produzir a energia solar, no interior do Piauí, com o custo mais barato do mundo. É mais barato que usar hidrelétricas, que qualquer fonte térmica, ou nuclear, carvão ou petróleo. No Nordeste, o potencial que a Chapada Diamantina, na Bahia, tem para a energia eólica é impressionante, assim como temos no Ceará e no Rio Grande do Norte. Se nós já temos essa energia mais barata, o que falta é apenas um mecanismo de transição. “Ah, mas é caríssimo fazer essa transição”, alguém pode dizer. Mas não é caríssimo. Temos que lembrar que o custo é apenas para a implantação. Ao contrário da térmica, o combustível é o vento e o sol. Depois da implantação, o custo é apenas para manutenção. Já quando eu uso uma matriz térmica, vou precisar queimar carvão e gás pelo resto da vida. Tem que haver financiamento. Não é mais um fator econômico. Hoje, 24% das emissões vem dos desmatamentos e da agricultura. 

Quais seriam as nossas alternativas para reduzir o desmatamento e para não comprometer a nossa agricultura? Nós podemos zerar os desmatamentos no planeta. Se você analisar o que vem acontecendo no hemisfério norte, inclusive na China, a área de florestas está aumentando. Isso é possível com uma agricultura cada vez mais produtiva e tecnológica. Se eles podem fazer isso, o Brasil também pode deixar de desmatar e aumentar as suas emissões. Nós temos que tornar a nossa agricultura, mas principalmente a nossa pecuária mais produtiva. Nós temos um modelo de pecuária do Brasil que em se utiliza uma área muito grande para um retorno muito pequeno. Tem pessoas que pensam que tornar a atividade mais produtiva custa caro, mas isso não é verdade. Modernizar pode tornar a atividade mais lucrativa. Nós temos uma média na Amazônia de uma cabeça de gado por hectare, mas poderia ter três, sem nenhum prejuízo. É simples fazer isso, só manejo. Isso deixa a atividade mais competitiva, mais lucrativa e reduz a necessidade de novas áreas. 

É até estranho que o empreendedor brasileiro não tenha essa percepção.  Ele sabe disso, mas ainda vigora uma cultura expansionista. E tem a questão da legalidade, porque quase 80% dos desmatamentos são ilegais, tem muito roubo de madeira. Aí, neste caso a situação é mais complicada porque estamos falando do crime e o crime não se preocupa com o ambiente. 

Em sua apresentação, o senhor menciona um aumento médio de 1,5 grau Celsius na temperatura do Brasil nas últimas décadas. Quais são as consequências que já podem ser sentidas por conta deste aumento?   Nós temos vendo ondas de calor, dias muito mais quentes. Todas as estações meteorológicas instaladas no país tinham uma média de trinta dias por ano com uma temperatura acima dos 34 graus. Quando a gente olha as últimas três décadas, vemos que este número cresceu para 60 dias. A temperatura de 34 graus é o limite para a agricultura. Quando a temperatura fica acima disso, a produtividade cai muito. Dobramos a quantidade de dias com a temperatura mais alta. Com ondas de calor, a produtividade do trabalho cai. O efeito na saúde, se pensar numa cidade como Salvador, acabamos tendo um efeito muito ruim para pessoas com problemas cardiovasculares e respiratórias. Em toda a costa brasileira, o nível do mar subiu aproximadamente 20 centímetros. A costa está mudando. Se nada mudar, estamos falando em um aumento de mais 1,5 metro até o final deste século. Isso vai mudar a vida de milhões de pessoas aqui no Brasil. 

Uma cidade costeira, como Salvador, pode sofrer bastante... Quando se fala em Salvador, além da questão do aumento no nível do oceano, tem a questão das ondas de calor que preocupam muito, mas também um aumento nos números de desastres naturais. Isso preocupa em todo o mundo. Você tem pessoas que vivem em áreas de risco, como as que vivem em encostas de Salvador, de maneira muito vulnerável. As tempestades estão aumentando de intensidade e aumentando a sua frequência também. São impactos muito claros que a gente percebe perto de nós. 

Uma outra análise do senhor é que o semiárido brasileiro tende a se tornar um semideserto. Quais serão as consequências sociais e ambientais de uma transformação desta natureza? Nós vivemos entre 2012 e 2018 o período mais seco da história do semiárido brasileiro, desde 1860, quando o governo de Dom Pedro II instalou uma estação para medir as chuvas em Quixeramobim, no interior do Ceará. Desde então, nós nunca tivemos um período de seca tão longo quanto este que registramos. Ficou tão seco que a região norte da Bahia chegou a adquirir características de um semideserto. Este é um sinal de alerta, de que podemos ter uma mudança muito grande, porque as projeções climáticas indicam que se não tivermos sucesso na implementação do Acordo de Paris, as chuvas do semiárido vão diminuir. Vão ficar ainda mais concentradas e com um menor volume, o que caracteriza um clima de região semideserta. Até 50% do que hoje é o semiárido deve ser atingido. Vamos perder uma parte considerável da rica caatinga, que é um bioma rico em biodiversidade. 

Salvador tem se movimentado para ajudar a evitar o aquecimento global. Que tipo de contribuição o município e a população podem dar? Ainda que no Brasil grande parte do impacto venha da agropecuária, a carne das áreas desmatadas e todos os alimentos produzidos em desacordo com as boas práticas ambientais são consumidos nas cidades. Além disso, boa parte das emissões do transporte é realizada em cidades. Então, elas têm um papel muito importante sim. Se modificarmos o padrão de consumo, podemos dar uma grande contribuição. Se adotarmos um padrão que favoreça a economia de baixo carbono, vai deixar de ser interessante produzir de maneira irresponsável.