Nós somos os homens ocos

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  • Paulo Sales

Publicado em 5 de abril de 2021 às 05:00

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Espio a escuridão. Todas as noites, os lixeiros levam para longe os restos de nós. Nossos desperdícios, nossas imundícies, nossas garrafas vazias. Eles fazem algazarra em meio ao mau cheiro, que brotou mais cedo de nossas casas. Mais tarde, esses mesmos restos serão revolvidos, apalpados e avaliados pelos que não têm restos. Eles encontrarão valor no que desprezamos. Farão algazarra em meio ao mau cheiro, que brotou um dia de nossas casas.

Vivemos dias opacos, ordinários. Recordo Eliot: “Nós somos os homens ocos /Os homens empalhados /Uns nos outros amparados /O elmo cheio de nada. Ai de nós! /Nossas vozes dessecadas, /Quando juntos sussurramos, /São quietas e inexpressas /Como o vento na relva seca /Ou pés de ratos sobre cacos /Em nossa adega evaporada /Forma sem forma, sombra sem cor /Força paralisada, gesto sem vigor.”

Vivemos tempos ásperos, mórbidos, enfadonhos. Eliot prossegue: “Aqueles que atravessaram /De olhos retos, para o outro reino da morte /Nos recordam – se o fazem – não como violentas /Almas danadas, mas apenas /Como os homens ocos /Os homens empalhados”. Percorro o vazio com o olhar. Por aqui prosseguimos, soldados enlutados na terra devastada, em meio a baixas por todos os flancos, por todas as trincheiras. Sufocamos na desordem e no caos.

Outro dia sonhei que havia um golpe militar em curso. A atmosfera era de farsa, mas mesmo assim havia tensão. Personagens patéticos, como numa comédia italiana, gritando: “Faça-se a revolução!”, enquanto tanques desfilavam nas ruas. Não era divertido. A realidade sórdida invade a inconsciência, projeta fantasmas nas paredes do quarto, não me abandona até a chegada da luz mortiça. Leio insone num poema de Bishop: “Ouço as molas da manhã soando /em muros, corredores, camas de ferro /soltas ou em arpejos /alarmes esperados”.

Enclausurado, desejo a imensidão azul que me é proibida. A profundidade inalcançável aos meus pés, o Farol ao meu lado. Desejo horas de sossego com quem amo numa cidade estrangeira. O delírio do prosaico, apenas flanar despreocupado, rosto livre ao vento. Mas o que tenho é o teto escuro e o sussurro do ar-condicionado. Horas que me aprisionam dentro da noite veloz. Dias que se sucedem como linhas de montagem. Segundas, quintas e domingos com o mesmo sabor acre de desperdício, de fastio.

Enquanto meus olhos permanecem abertos, o país derrete. Uma enorme avalanche que vemos cada vez mais de perto. Recorro à poesia e a prosa, aos vinhos, canções e boas companhias para enfrentá-la com estoicismo e senso de responsabilidade. Recorro à convicção – cada vez mais frouxa, confesso – de que, por mais que demore, a avalanche perderá força e voltaremos à vida corriqueira, com suas pequenas dores e delícias. Quanto a todos esses que aí estão atravancando o nosso caminho, eles passarão. Mas que seja logo.