'Nunca foi difícil': conheça histórias de avós que cuidam dos netos como filhos

Em muitos casos, elas também participam financeiramente

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  • Thais Borges

Publicado em 12 de maio de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Larissa (à esquerda) foi criada como filha por sua avó, dona Elza (à direita). Hoje, elas moram juntas, ao lado do filho de Larissa, Arthur (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)

A aposentada Elza Silva tomou uma decisão há pouco mais de 25 anos. Já tinha criado cinco filhos, mas o destino tinha outros planos. Viu três de seus oito netos perderem a mãe - a nora faleceu por uma doença degenerativa. O pai das crianças, seu filho, trabalhava o dia inteiro. “Não podia deixar os três sozinhos. Alguém tinha que tomar conta. Me compadeci e fiquei com os três”, conta dona Elza, hoje com 95 anos. 

Na época, a mais velha das crianças tinha cinco, quase seis anos. Era a relações públicas Larissa Dias, que está com 32 anos. Um dos mais novos – dois meninos – tinha três anos, enquanto o outro, um bebê, não devia ter mais do que um. Mal tinha desmamado. Foi nesse contexto que dona Elza se tornou uma mãe para seus netos, passando a assumir todas as responsabilidades das crianças. 

Como ela, existem outras tantas avós que, por diferentes motivos, são como mães para seus netos – seja por terem se tornado responsáveis legais, seja por ajudarem, de alguma forma, os pais na criação dos rebentos, inclusive financeiramente. São mulheres que estão cada vez mais distantes da imagem da avó velhinha e frágil. 

Essa imagem, inclusive, é algo que vem mudando a cada ano, devido ao aumento da longevidade da população. Em toda a Bahia, mais de 455 mil mulheres idosas (com 60 anos ou mais) eram chefes de família em casas com pelo menos duas pessoas, em 2015, de acordo com o IBGE. Isso equivale a quase 40% do universo total de mulheres com essa idade no estado. 

Em Salvador e na Região Metropolitana, esse percentual chega a ser um pouco maior: das 279,5 mil mulheres idosas que viviam nessas cidades, 119,2 mil eram responsáveis pela família. Ou seja: pouco mais de 42% do total. 

'Não foi difícil' Dona Elza, por exemplo, passou a arcar com a mensalidade da escola e todas as despesas dos netos, ao mesmo tempo em que estabelecia as regras da casa. Ainda hoje, Larissa mora com a avó, na casa onde cresceu. Só que agora, há um novo habitante: o pequeno Arthur, 5, filho dela e bisneto de dona Elza. “A relação que eu tenho com ela é de mãe e filha. Hoje, eu a entendo mais do que as próprias filhas dela, pelo convívio que temos. Ficamos muito sozinhas, faço mercado, as coisas da casa. Com os outros netos, ela é uma mãezona também, mas, por eu ter vindo morar com ela, tem esse vínculo comigo”, conta Larissa. A avó também ajuda com os cuidados de Arthur – é responsável pelo plano de saúde e por uma parte dos gastos com a escola. Fora isso, costuma dar presentes ao bisneto. “Como bisa, ela é completamente diferente (do que como ‘avó-mãe’). Ela passa mais a mão na cabeça dele do que passava na minha. Ele não pode chorar que ela vem atrás ver”, completa. 

Passados quase 30 anos, dona Elza minimiza eventuais dificuldades. Para ela, nenhum momento fez com que sentisse que não valia a pena. Também garante que não ficou ‘cansada’ por encarar a criação de três pequenos com quase 70 anos.“Não é porque passou, mas porque nunca foi difícil. Tive algumas dificuldades, mas as coisas passam. Depois, tudo passa”, reflete. Cuidado compartilhado A professora aposentada Claudice Andrade, 59, ainda nem chegou aos 60 anos, mas já está entre as avós que exercem a maternidade com os netos, em algum aspecto. No caso de dona Claudice, a vida mudou depois da chegada de Maria Sofia, que completa quatro anos no próximo dia 21. 

Antes da primeira neta, era a dona de um bordão conhecido entre as amigas, em Paripiranga, no Nordeste do estado, onde morava. “Quem pariu Mateus que balance”, dizia, já como um aviso aos filhos – dois homens, hoje com 35 e 29 anos.“Eu dizia mesmo que quem parisse seus filhos que cuidasse, porque eu queria descansar. Tive três derrames faciais, sofri muito no casamento e achava que ia descansar na aposentadoria”, lembra. Hoje, não consegue encontrar uma colega de trabalho ou amiga que não brinque com sua situação. Há um ano e quatro meses, dona Claudice veio a Salvador passar um final de semana com o filho que mora aqui, a esposa e a pequena Sofia. Na segunda-feira seguinte, dia que se programava para voltar para casa, a nora tinha uma entrevista de emprego. Pediu que a sogra ficasse, naquele dia, com a menina. A moça foi aprovada e chamada para começar o trabalho naquela mesma semana. 

“Fui ficando e já tem um ano e quatro meses que estou aqui, ajudando no que posso. Antes, eu vinha passar fim de semana ou feriado aqui, agora, faço o contrário com minha casa lá”, conta ela, referindo-se ao imóvel em Paripiranga. Na última quarta-feira (8), viajou para a cidade depois de quatro meses sem ir em casa. Foi passar o Dia das Mães com o filho mais novo, que ainda mora lá. 

Mas a volta para Salvador deve ser antecipada: estava prevista para quinta-feira (16), mas deve acontecer já nesta segunda (13). Não quer passar tanto tempo longe de Sofia, como costuma chamar a neta, mesmo sabendo que a pequena deve fazer chamadas de vídeo pelo celular todos os dias. É sempre assim quando tem que se ausentar. 

É dona Claudice quem cuida da menina desde que ela acorda até a hora de ir para a escola, à tarde. Penteia o cabelo, arruma a roupa e dá o almoço. À noite, quando a neta volta para a casa, é quase certo que Sofia queira ficar perto da avó – mesmo com a presença dos pais. “O amor é tão grande por essa criança. Eu tive dois filhos homens, então eu sempre tive muita vontade de ter uma menininha. Deus não me deu, mas me deu uma netinha. E o amor dela é tão grande por mim...”, diz. Além disso,  também ajuda financeiramente. Colocou Sofia em seu plano de saúde – o Planserv, que permite a inclusão de netos como dependentes desde 2009 – e dá um apoio em eventuais despesas. Um lanche que falta enquanto os pais estão fora, um remédio que precisa comprar naquele momento. 

Hoje, dona Claudice dorme no quarto de Sofia, enquanto a menina dorme no quarto dos pais. A possibilidade de irem morar em um apartamento de três quartos já foi discutida, assim como a compra de uma cama de casal para acomodar neta e avó – quando estiverem juntas. “Eu não penso em deixá-la, por isso, pretendo continuar em Salvador. Quando ela começar a se defender sozinha, saber agir sozinha, eu penso em voltar para casa. Mas estou aqui por causa de dela”. Participação A enfermeira Simone Valadares, 56, também se divide entre os plantões no Hospital Geral do Estado (HGE) e a convivência com os três netos – especialmente os filhos de sua filha, Henrique, 8, e Benjamin, 4, que moram em uma casa ao lado da sua. 

Costuma acompanhar de perto a educação dos dois – inclusive, garantindo que tratem bem as pessoas. “Aqui, minha filha não se incomoda (com a participação dela), nem meu genro. Minha relação com eles é ótima e com as crianças é melhor ainda”, conta. 

Os dois estudam durante a manhã e, quando chegam da escola, é a ‘vovó Simone’ quem vai recebê-los no transporte escolar. Ficam na casa dela até o horário em que a mãe chegar do trabalho, a partir das 17h. Henrique e Benjamin almoçam, brincam, fazem o dever de casa... Tudo ao lado da avó. “Falo o tempo todo que me sinto mãe duas vezes, desde que eles nasceram. Minha filha não tinha experiência e eu ajudava a cuidar desde o início. Claro que tudo se aprende, mas sempre existiu uma relação muito forte entre eu e as crianças”, diz ela, que garante não se cansar com os cuidados extras. São os pais que bancam a escola e o transporte para casa, mas Simone conseguiu incluir os dois no plano de saúde. Mas, se tiver que comprar um caderno, um lápis ou até um tênis, ela também faz questão de estar presente, caso haja necessidade. 

“Minhas colegas de trabalho também cuidam dos netos e ajudam financeiramente. Antes, eu não via tanto isso, mas acho que a situação financeira mudou, porque a gente convive mais junto. Quase todas as minhas colegas têm netos que moram próximo”.

A psicóloga Sandra Rolemberg, especialista em terapia de família e professora de Psicologia da Unifacs, destaca que novos arranjos familiares podem fazer com que avós se tornem figuras de responsabilidade. 

Além dos casos em que isso acontece por ausência dos pais ou por necessidades econômicas, também há situações em que as avós participam, ainda que o lugar dos pais seja mantido como figura de afeto e autoridade.“Mas elas assumem um lugar também de coparticipação”, diz a psicóloga. No entanto, é possível que, nessas situações, aconteçam choques de gerações. Como a avó é a genitora da mãe da criança, não é incomum que surjam percepções diferentes e formas de educar diversas, que podem vir a ser fontes de ajustes ou de atritos. “Mas é importante que esses papéis fiquem definidos para não existir sobreposição, nem desautorização. A avó não pode desautorizar a filha”, completa a psicóloga.

Entenda os direitos e responsabilidades das avós, segundo a legislação Do ponto de vista legal, o papel das avós na criação dos netos pode se dar de diferentes formas, como explica a advogada Lara Soares, professora de Direito da Faculdade Baiana de Direito e presidente da Comissão de Direito da Família da Ordem dos Advogados do Brasil – Bahia (OAB-BA). 

Prestação de alimentos – É a conhecida pensão alimentícia, mas, de acordo com o Direito de Família, não se trata apenas de “comida”. É um valor que inclui o que for necessário para o bem-estar, a sobrevivência e manutenção do ser humano. Os pais são os primeiros obrigados a cumprir com isso, mas os avós também podem responder.

Segundo a professora, a lei diz que, quando não for possível aos pais sustentar ou suportar o valor desses alimentos, caberá aos avós, de maneira subsidiária.

Mas não é qualquer situação que faz com que os avós sejam responsáveis pela prestação de alimentos. Isso só costuma acontecer em situação como morte de um dos pais, por exemplo. 

De quem é a guarda – Os avós têm o direito a conviver com a criança, enquanto família. A guarda, porém, implica na administração da vida da criança. Segundo Lara, o direito de conviver não quer dizer morar. Mas, quando há esse cuidado prestado, acaba ocorrendo e isso decorre muito da solidariedade. 

Quem tem a guarda é que pode tomar decisões como, por exemplo, a escola onde a criança vai estudar ou que atividades extracurriculares serão feitas. O guardião também é a pessoa que pode responder por abandono, caso isso ocorra. 

A advogada explica que, ocasionalmente, os pais podem suportar 60% das necessidades da criança e os avós estejam responsáveis por 40%. Isso não significa que a administração da vida da criança saia dos pais para os avós. Esse poder de administração é de quem tem a guarda.

Solidariedade – Quando as situações não têm regulamentação judicial, mas decorrem de uma característica social da família. Assim, a solidariedade está prevista na legislação. Casos como os mostrados pelo CORREIO, em que as avós participam da vida dos netos, se encaixam nesse contexto, pelo bem-estar das crianças. 

Incluir no plano de saúde – Isso vai depender do regramento de cada plano. O Planserv, por exemplo, permite a inclusão de netos como dependentes. No entanto, em outros planos, é preciso ter o termo de guarda. Em outros, nem assim é possível. 

Lara Soares também comenta que costuma orientar a pessoa para que verifique, junto ao plano de saúde, os requisitos para dependentes. Isso porque pode ser que, estabelecendo-se a guarda, seja possível fazer a inclusão.

Incluir no plano previdenciário – Assim como os planos de saúde, as empresas previdenciárias devem ser consultadas para indicar quais são as condições em que isso é possível – se for. 

A advogada afirma que é muito comum, no poder Judiciário, ações de guarda tanto do plano de saúde quanto previdenciário.