O adeus a Sales, lendário garçom ‘vira-folha’ que ressuscitou quando menino

Vítima da covid-19, funcionário por 23 anos do bar Pós-Tudo, no Rio Vermelho, deixa legião de clientes órfãos das suas histórias e jeito mal-humorado

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  • Da Redação

Publicado em 2 de agosto de 2020 às 06:03

- Atualizado há um ano

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. por Foto: Acervo da família

Foto: Acervo da família O nome de santo, apóstolo ou distinto navegador quase não era pronunciado. Na meca da informalidade, Bartolomeu Sales era simplesmente Sales. Ou “chama Sales”, “traz mais uma, Sales”, “mais gelada, Sales”, “fecha a conta, Sales”.

Na última segunda-feira, por conta da covid-19, a saideira chegou. Um dos personagens mais folclóricos, carismáticos e queridos de toda uma geração de boêmios, artistas, desocupados, alcoolistas, hippies, ativistas, citadores de frases de livros que não leram, arrivistas, adúlteros, exibicionistas, aleatórios, comunistas, briguentos, jornalistas, infelizmente, se foi.

Nascido no povoado de Nagé, em Maragogipe, no Recôncavo baiano, Sales não fez do ato de servir um sacerdócio, como os clichês de obituário insistem em romantizar. Tampouco foi um ouvinte insuspeito de descasos amorosos, na figura quase religiosa do cancioneiro de Reginaldo Rossi. Ser garçom era seu ganha-pão, principal fonte de sustento da família. Foi também a forma como se conectou com tanta gente, atravessando longas madrugadas primeiro no bar Berro d’Água, no Porto da Barra, transferindo-se depois para o Pós-Tudo, no Rio Vermelho.“Ele tinha um jeito muito sincero e reservado. Às vezes meio mal-humorado, mas até aquilo nele era carismático. As pessoas gostavam dele. Simplesmente gostavam”, diz Carolina Gomes, jornalista, citada pelas amigas como uma das pessoas mais “boêmias da cidade”.Ela lembra que, quando a cerveja chegava ‘choca’ na mesa e alguém se predispunha a reclamar, Sales não gostava. Primeiro, vinha um murmúrio. Depois, recolhia o casco mal refrigerado e reaparecia do balcão trazendo uma garrafa dentro dos mais rigorosos padrões árticos.

“Ele dizia assim: ‘essa aqui tá picolé. Prove aí. Tá picolé!’. A gente se acabava na risada. O jeito dele conquistava todo mundo. Ele era uma atração”, completa. Foto: Acervo da família Meio ranzinza Aos clientes de sempre, figurinhas carimbadas, os pedidos eram mera formalidade.  “Era muito competente. De pouco sorriso, meio emburrado, mas muito prestativo. Acho que ele tinha simpatia por mim. Quando ia me atender já sabia o que eu ia querer. E soltava aquele sorrisinho”, relembra a artista visual Lígia Aguiar.

Sobre o famoso jeito ranzinza, marca inabalável, o barman Luiz Aragão Júnior, companheiro de trabalho por mais de uma década, dá outra versão.

“O Pós-tudo era muito divertido de trabalhar, mas os clientes, principalmente da madrugada, faziam a maior zona. Era uma bagunça da porra. E Sales tinha aquele jeito correto. Não atrasava, não perdia pedido. Aí quando via aquela bagunça fechava a cara e tentava manter a ordem. E o pessoal realmente respeitava ele”.

Uma das muitas histórias do folclore de Sales foi como afugentou uma turma que, burlando as regras do estabelecimento, tentava prolongar a noite enfileirando carreirinhas no banheiro.

“Ele chegou de mansinho e soprou tudo. O povo ficou indignado, xingando ele, dizendo que aquilo era caro e tudo mais. Ele saiu e voltou para atender as mesas, numa boa”, conta, anônimo, um dos participantes daquela frustrada baderna alucinógena.

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Vira-folha e vida nova Ter vindo ao mundo no dia 4 de setembro, relembra o amigo Domingos Paulo, era um dos maiores orgulhos do garçom-xerife. Coincidia com a data de nascimento de Antonio Carlos Magalhães (1927-2007), político que assiduamente votava e devotava. “Todo mundo que trabalhou com Sales sabe o dia do aniversário dele, porque ele não cansava de repetir isso. Tinha um orgulho danado”.

Mas, aquele nascimento seria apenas um, entre outros dois que Sales teria ao longo da vida. O jornalista e escritor Antônio Pastori narra uma das histórias mais insólitas envolvendo o amigo. É tão miraculosa que não dá pra precisar onde termina o fato e começa a colorida versão, como naturalmente ocorre em sagrados espaços que agrupam mesas, cadeiras, freezer e bebidas.

“Ele tinha dois ou três anos de idade, quando pegou uma virose pesada. Estamos aí falando da década de 1950. O médico deu por desenganado. Depois, o mesmo médico disse ‘ele morreu’. Foi aquela comoção na família. Todo mundo no velório. Um caixãozinho, pequenininho. Todo mundo chorando. E eis que, de repente, Sales levanta e mostra que estava vivo. Imagine? E viveu bem e viveu muito. A morte de Sales foi um paradigma quebrado, porque ele driblou a morte no início da vida. Dessa vez, não teve jeito”.

Ressuscitado tal qual Lázaro, já bem mais velho, Sales ainda teve outro recomeço, num campo considerado por muitos uma franca heresia. Cansado dos muitos momentos de agruras do Bahia, durante os sete anos longe da primeira divisão, sem cerimônia, se bandeou para o rival. “Ele virou Vitória mesmo. No início a gente achava que era chacota. Mas aí começou a aparecer um monte de foto dele no Barradão, de uniforme e tudo. Sales virou Vitória! Quando o Bahia ganhava um Ba-Vi a gente perturbava ele muito”, lembra, aos risos, o amigo Aragão.

Dona do estabelecimento Pós-Tudo até 2014, a empresária Dulce Ferraro contratou Sales em 1991, quando o bar ainda se chamava Zona Franca. Dali começaria uma longeva amizade, permeada por confiança e pequenas confraternizações quase diárias antes do merecido descanso. “Quando a gente fechava o bar, às vezes ia tomar a saideira no antigo Mercado do Peixe. Estávamos cansados da maratona, mas não deixávamos de fazer nosso encontro. Era nosso momento de falar das nossas preocupações, dos filhos, jogar conversa fora. A gente passava a noite toda vendo gente se divertindo e também queria ir para o outro lado do balcão”, relembra.Nos últimos anos, Sales já não mais labutava na madrugada boêmia de Salvador. Tinha finalmente conseguido a tão sonhada aposentadoria. Entre os clientes mais antigos, a morte dele traz à baila memórias de tempos mais leves, menos bicudos.

“Muitas lembranças vieram. Minha relação com ele não se limitou ao fato de eu ser cliente. Eu, particularmente, conseguia arrancar uns sorrisos dele. Por diversas vezes, conversávamos sobre política, futebol. Ele desabafava e eu também. Assim seguíamos na noite...”, relembra a relações públicas Adriana Tourinho.

“O legado de Sales é essa simpatia que faz tanta gente lembrar dele. A herança vai além da casa que deixou pra gente. É todo seu esforço para que não nos deixasse faltar nada, de valorizar os estudos, a família e o respeito pelo seu trabalho. Meu pai foi um grande homem”, diz o filho André, orgulhoso.

Bartolomeu Sales, ou famoso Sales, morreu aos 63 anos, após ficar trinta dias internado tratando de um AVC hemorrágico, causado pela covid-19. Deixa uma neta, Isabelly, o filho, André, e a esposa, Ana.