Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Paulo Sales
Publicado em 19 de agosto de 2019 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Em suas andanças pela Espanha profunda, Dom Quixote de La Mancha leva com ele o desafortunado Sancho Pança. Juntos, participam das mais disparatadas peripécias, revivendo em tom de paródia os romances de cavalaria, que fizeram o herói perder o juízo. O Cavaleiro da Triste Figura persiste em seus desvarios mesmo sendo diversas vezes advertido por seu escudeiro. Luta contra moinhos, confunde sacerdotes com feiticeiros, acredita que criminosos perigosos são pessoas inocentes e até mesmo imagina que rebanhos de animais são exércitos poderosos. >
Sancho o acompanha, iludido a princípio pela promessa de dinheiro e glórias. Mas à medida que o tempo passa, percebe que Dom Quixote não irá cumprir o que havia acertado e permanece ao seu lado por piedade. O velho fidalgo é um homem mentalmente incapaz, que enxerga inimigos em cada moita ou curva da estrada. Em seu estado demencial, Dom Quixote faz mal apenas a si mesmo e ao pobre Sancho. São seguidas vezes espancados e ridicularizados, até que por fim voltam humilhados ao vilarejo de onde saíram. >
Ao lembrar das desditas do simpático personagem de Miguel de Cervantes, fiquei aqui imaginando, num devaneio um tanto inusitado, uma nova aventura para ele. Digamos que as loucuras que dizia e fazia o tornassem popular. Tão popular que a maior parte da população do país resolveria votar nele para presidente. Mas não imagino a Espanha como sendo esse país. Transportaríamos a trama para uma região, digamos, mais meridional. Uma nação dos trópicos, talvez. Sancho Pança representaria o arquétipo da população ingênua e insensata seduzida pelo discurso repleto de desatinos do nobre fidalgo - que não seria um fidalgo, mas capitão do exército.>
Mais: esse novo Quixote não seria apenas um sujeito aloprado, mas também malévolo, tolo, canalha, transformando assim o caráter farsesco do original num símbolo trágico. Alguém poderia se perguntar: mas isso faria sentido? Um louco vil e mesquinho presidindo um país? Bem, a história é pródiga em figuras desse tipo (Hitler, Mussolini, Pol Pot, Idi Amin) e não faltariam outras na atualidade. Eleger gente maluca e abjeta é uma especialidade da raça humana, fruto de uma mitologia muito peculiar.>
Rapidamente, o Quixote tropical levaria o tal país ao caos e à destruição, com a anuência dos que votaram nele. Para auxiliá-lo, tiraria da sarjeta outros tipos obscuros - vigaristas, pilantras, aventureiros, Napoleões de hospício - e com eles formaria um circo de horrores. Imagino alguns desvarios dessa cruzada quixotesca: ele lutaria contra o conhecimento e a cultura, confundiria torturadores com heróis nacionais, trataria professores, índios, gays e mulheres como rivais perigosos e até mesmo, pasmem, enxergaria em árvores milenares um pelotão inimigo a ser exterminado. Ao contrário do livro de Cervantes, esse Dom Quixote sem caráter e sem escrúpulos não faria mal a si mesmo, mas ao seu povo.>
Pensando bem, é melhor deixar esse devaneio pra lá. Vai que vira realidade. >