O casaco de Janis Joplin esquecido na Bahia

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  • Kátia Borges

Publicado em 15 de junho de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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A casa ficava num bairro perto do mar, num sobrado, escada sinuosa e longa até o céu azul. Estacionamos na rua e subimos lentos e desconfiados, como se chega na casa dos outros. A porta estava aberta. Escondi a timidez no bolso e fui chegando com um riso no rosto. Ele já estava na sala esperando por nós e me recebeu com um abraço. Eu havia ido até ali atrás de lembranças da passagem de Janis Joplin pela Bahia.

Nós nos conhecíamos de outros tempos, da noite na cidade antiga, quando tudo parecia um filme dirigido por Wenders ou Fassbinder. Nos perdíamos e nos encontrávamos em bares e em vernissages pros lados da Escola de Belas Artes. Muita gente me sabia assim, de uma liberdade desconcertante. De alguns deles, confesso, simplesmente esqueci, como se esquece partes soltas de um sonho.

Durante um bom tempo, enquanto fazia jornalismo, instituímos o Café Teatro como nossa segunda casa. Era um bar sem charme algum, mas as coisas aconteciam naquelas mesas. Trocávamos até bilhetes por meio dos garçons. Só botar a mensagem no bolso de um deles e ela encontrava o destinatário. E havia algo mágico, como se aquilo fosse um ensaio para entrar em cena em algum momento.

As escolas de teatro e belas artes ficavam perto, quase em triangulação com a Faculdade de Comunicação. As residências universitárias viviam abarrotadas de gente interessante. E tropeçávamos o tempo inteiro com os artistas de verdade. Nós mesmos, todos aspirantes a alguma coisa, cada qual com seu projeto incrível de filme, dramaturgia, romance, lendo On The Road e Fante, escrevendo poesia.

Ele era bem mais velho que o resto da minha turma, um artista plástico em ascensão, sempre transitando entre pincéis e telas e a cenografia de peças, que assistíamos fascinados no palco do Teatro Santo Antônio. De algum modo muito estranho, fazíamos parte de uma mesma geração que se perdia e que se achava entre referências dispersas de música, literatura e cinema dos anos 60 e 70.

Agora estávamos ali, e eu tinha um gravador nas mãos. Queria escutar as histórias que ele havia vivido ao lado de Janis Joplin no verão de 1970, quando ela desembarcou por aqui num dia quente na América do Sul, depois de passar por alguns vexames no Rio de Janeiro. Eu tinha um bloco de notas também, porque naquela época eu andava assim, querendo garantir que as coisas dessem certo, e bem profissional.

Mas ele veio de cara contar que descobrira um câncer. E não, definitivamente aquilo não estava certo, porque eu fora ali querendo apenas uma entrevista sobre Janis. E lembro que a porta permaneceu aberta e, por ela, entrava uma luz que insinuava o sol lá fora. Não era certo então que ele falasse com tamanha calma sobre estar doente. Menos ainda que eu precisasse mudar o rumo da conversa.

Então ele disse da noite em que gritaram em seu portão e ele desceu em disparada fazendo pouco da história. E lá estava Janis, a mesma cantora norte-americana que ele escutava em sua vitrola. E ela estava bêbada com a turma, e foram curtir a madrugada em um bar na zona. E ela cantou Summertime para as putas. E, quando foi embora para Arembepe, esqueceu um de seus casacos na casa dele.

Na impossibilidade de devolver o casaco para Janis, ele o usou durante meses, num misto de saudade e orgulho, até que veio outubro e as notícias de que ela morrera de overdose no Landmark Hotel aos 27, assim como Morrison e Hendrix. Numa homenagem, que em sua cabeça conectava para sempre a Bahia e a melhor cantora do mundo, entregou a peça ao mar, lá pros lados do Rio Vermelho.