O coronavírus transformou Milão em fantasma 

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Publicado em 14 de março de 2020 às 17:20

- Atualizado há um ano

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Vivo em Milão (Itália) e, nas últimas semanas, meu celular ficou congestionado com mensagens de amigos e parentes brasileiros preocupados com o fato de eu estar na cidade que virou um dos epicentros do coronavírus no mundo. "Como você está?". "Como está a situação aí?". Todo dia era uma mensagem nova. Amigos, estou bem fisicamente, mas abalada emocionalmente. 

Não estou contaminada (acho), pois estou me sentindo bem. Mas os médicos daqui afirmam que muita gente já pode estar contaminada, sem apresentar nenhum sintoma. Considerando a velocidade de transmissão desse vírus, de certa maneira já me resignei com o fato de que uma hora ou outra vou pegá-lo. O que estou fazendo é me alimentando bem, bebendo bastante água e saindo realmente muito pouco de casa. Eu trabalho em casa, então nesse sentido a minha vida não mudou muito. Mudou mais a vida social, essa sim mudou bastante desde o fim de fevereiro.  Samira Menezes é jornalista e vive em Milão Após contaminações em uma cidade próxima de Milão (Codogno), o governo decidiu fechar escolas, universidades, museus, discotecas, academias, cinemas e teatros. Lugares onde pudesse haver aglomeração de pessoas. Até aí, muitos conhecidos do meu círculo acreditavam que em uma semana a coisa toda voltaria ao normal. Que bobinhos que fomos! Os números de contaminados foram aumentando dramaticamente, sobrecarregando o sistema de saúde público lombardo, considerado o melhor da Itália.

Nas primeiras semanas (depois do dia 22 de fevereiro), em meio a muitas dúvidas sobre a origem e os efeitos desse vírus, houve uma nítida divisão entre alarmados e desinteressados. Acompanhando as notícias, a impressão era de que qualquer um que pegasse o coronavírus, morreria em pouco tempo e de que estávamos entrando na terceira guerra mundial. As informações importantes, como as medidas preventivas, os sintomas e os cuidados a serem tomados em caso de contaminação, ficaram perdidas em meio a números de contaminados e mortos. 

Aqueles que se sentiram alarmados correram para os supermercados com a intenção de estocar comida em casa. Consequentemente, em alguns supermercados chegou a faltar comida. Outras pessoas reagiram de maneira diferente. Simplesmente ignoraram a existência da ameaça do coronavírus e continuaram levando a vida normalmente, saindo à noite para ir em restaurantes, jantar na casa de amigos e tal. No bairro onde moro, de modo geral, vi as pessoas bastante tranquilas. Por aqui, o abastecimento dos supermercados continua normal até hoje. Em nenhum momento faltou nada.

A vida seguia normal para a maioria dos milaneses mesmo com o governo batendo na tecla de o vírus ser mais perigoso para idoso e pessoas imunodeprimidas. Por isso, desde o fim de fevereiro havia a recomendação de sair de casa apenas se extremamente necessário.Mas a ficha ainda não tinha caído para nós. Como o vírus vinha de muito longe, da China, e o epicentro aqui, ou seja, a cidade de Codogno, já tinha sido isolado, o resto de nós continuava acreditando que estávamos imunes. Deve ser normal pensar que algo de ruim nunca vai acontecer com a gente. Por isso, mesmo com a recomendação oficial de ficar em casa, eu continuava vendo muita gente na rua, inclusive idosos e, principalmente, jovens. Diante dessa "subversão" do povo e do crescente número de contaminados, o governo precisou agir de maneira mais drástica. Sábado (07/03) vazou o rascunho de uma medida de precaução que horas depois foi divulgada oficialmente: o "fechamento" da Lombardia. Quando essa informação vazou (não sei quem vazou nem quem noticiou primeiro), muita gente correu para as estações de trem de Milão (Garibaldi e Centrale) para voltar para a cidade-natal. Isso foi muito criticado porque possivelmente essas pessoas levaram o vírus para outras partes da Itália onde definitivamente o sistema de saúde é pior do que o da Lombardia.

Sábado à noite então "fecharam" a Lombardia. Só poderia entrar e sair da região quem tivesse uma justificativa (motivo de trabalho, saúde ou urgência). Não sei como fizeram e como estão fazendo esse controle, mas agora não importa mais, porque na segunda-feira (09/03) colocaram o país inteiro em quarentena até o dia 3 de abril. Voos internacionais de e para a Itália foram cancelados, restaurantes e bares só poderiam abrir entre 6h e 18h, e na internet começou a chover a hashtag #iorestoacasa (eu fico em casa). Com isso, muita gente passou a trabalhar de casa e visivelmente a cidade começou a mudar. 

Comecei a ouvir bem menos carro passando na rua. Tive que pegar metrô e uma das estações mais movimentadas da cidade estava vazia às 11 h da manhã. No chão dos supermercados, foram colocadas fitas adesivas para demarcar aquele 1 m de distância segura entre uma pessoa e outra. Fui comprar comida para a minha gata e no pet shop os clientes tinham que fazer fila do lado de fora e entrar um por vez, para não aglomerar pessoas do lado de dentro. O salão de beleza comandado por chinesas, onde eu costumava fazer unha e depilação, já estava fechado há pelo menos uma semana. As pessoas passaram a usar máscaras e luvas cirúrgicas, e deixamos de nos cumprimentar com um aperto de mão ou com dois beijos no rosto, como estávamos acostumados a fazer. 

Na quarta-feira (11/03), porém, as coisas começaram a tomar dimensões ainda mais dramáticas. O primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, fez um pronunciamento em rede nacional para avisar que a partir de quinta-feira (12/03),  todas as lojas e exercícios comerciais do país, com exceção de estabelecimentos de produtos alimentícios, farmácias, correios e bancos, deveriam ficar fechados até o fim da quarentena, ou seja, 3 de abril. Depois desse pronunciamento, a minha querida Milão virou literalmente uma cidade fantasma. 

Desde então estou em casa, saindo apenas para comprar algum item alimentar que falta em casa. Na rua, o silêncio impera. E na internet não para de chegar números sempre maiores de contaminados e mortos. Não conheço ninguém contaminado com o coronavírus, mas psicologicamente estou abalada, porque fui obrigada a guardar na gaveta aquela liberdade de ir e vir que tanto prezava. O senso de responsabilidade fala mais alto agora. Hoje eu não posso sair do país, mas, mesmo que pudesse, não sairia para não correr o risco de talvez contaminar outras pessoas.

Se de um lado vem crescendo o medo de pegar o vírus, do outro lado vem crescendo também aquele senso de união entre os milaneses - milanês doc ou não, estamos todos no mesmo barco, ou melhor, cada um na própria casa, seguindo as recomendações do governo para tentar conter essa pandemia o mais rápido possível. Acompanho notícias com cautela, porque não quero ficar ainda mais ansiosa. Assisti com interesse vídeos de diferentes médicos e diretores de hospitais importantes de Milão explicando que estão trabalhando no limite, mas, por enquanto, continuam atendendo todo mundo que chega. Mandar todo mundo ficar em casa serve para tentar conter o aumento de contaminados e, consequentemente, o colapso do sistema de saúde. 

Continua me intrigando, porém, uma coisa: quando começaram a divulgar notícias da China sobre o coronavírus, a Itália foi o único país da União Europeia a cancelar os voos de e para a China. Poucas semanas depois teve início esse surto, justamente na artéria econômica da Itália - a Lombardia. Nem sei mais o que pensar e sim, estou com medo das consequências disso no mundo.

Samira Menezes é jornalista e mora na Itália