O dia em que a sanfona branca de Gonzagão foi quebrada por um baianinho traquina

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  • Da Redação

Publicado em 2 de julho de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Naquele começo de noite do dia 2 de julho de 1974, as centenas de pessoas que bebiam, comiam e dançavam no quintal de uma imensa propriedade da cidade de Alagoinhas nem assuntavam que “um verdadeiro atentado à cultura e à tradição nordestina” acontecera momentos antes. 

No palanque armado de frente para um amplo terreiro, Luiz Gonzaga percorria os dedos pelas teclas de um acordeon Scandalli preto, extraindo os acordes introdutórios de “Boiadeiro”, ao tempo em que, pelo microfone, mandava sua saudação ao dono da festa: 

- Sêu Julinho, sertanejo macho. Hoje, ele faz 68 anos. Mas ano que vem ele pula, faz 70. Porque cabra da marca dele não faz 69.

Enquanto a plateia ria, o sanfoneiro ampliou o arco do fole e abriu o gogó:

- Vai boiadeiro que a noite já vem, amigo Júlio eu lhe dou meus parabéns...

Os risos cederam lugar aos aplausos e Sêu Lua seguiu a canção.

Na época, com exceção de uma notinha lida pelo radialista Deusdete, da Rádio Difusora, o assunto não foi notícia em nenhum outro veículo de imprensa. Afinal, onde estaria aquela sanfona branca, que no ano seguinte seria homenageada por Benito de Paula, em um dos maiores sucessos da MPB? Ainda era manhã, quando os convidados do comerciante Júlio de Souza Carmo começaram a chegar para o seu aniversário. E por “convidado”, entenda-se toda a cidade. Dos poucos que receberam convite formal, o mais aguardado era o Rei do Baião. 

Às quatro e tanto da tarde, finalmente, ele chegou, sendo recebido na porta pelo dono da casa. Todos queriam estar perto daqueles dois sexagenários que partilhavam muitas afinidades. Eles e outros mais graduados na hierarquia dos presentes tomaram todos os assentos do hall da entrada da residência e, entre um copo de licor e uma mordiscada num naco de peru, a tal sanfona branca fora momentaneamente esquecida na ante-sala da casa, onde era observada apenas por um pequeno magricela amarelo, de vasta cabeleira acastanhada. Do alto dos seus quatro anos e meio de vida, o corninho não teve dúvidas: iria tocar aquele fole.

Como que instruído pelo cão, ele jogou a alça por cima do pescoço, enfiou o braço esquerdo pela tira de sustentação lateral e chamou para cima de si todos os 10 quilos de sanfona. Um peso quase igual ao dele próprio. O resultado não poderia ser diferente: sanfona no chão, menino chorando, zuada, corre-corre e um Luiz Gonzaga visivelmente contrariado ante a um Júlio Carmo mais contrariado ainda.

A criança, que era neta de anfitrião, escapou de uma pisa ali mesmo, saindo do episódio apenas com um puxão na orelha dado pela mãe, enquanto era conduzida para sentar de castigo em um dos cômodos da casa. 

O instrumento estava avariado e precisaria de reparos antes que pudesse ser usado de novo. A sorte dos convidados era que o velho Albertino Espinheira havia levado sua própria sanfona e a emprestou para Luiz Gonzaga, literalmente, fazer a festa.

Décadas depois, quando aquele garoto inconsequente já acumulava filhos, dívidas e cabelos brancos, essa história chegou ao conhecimento da mulher dele. Ela, uma pernambucana (desculpem pelo pleonasmo) bastante orgulhosa de sua terra e conterrâneos, deixou clara a sua reprovação ao ato do marido:

- Quebrar a sanfona do Rei do Baião. Isso sim é um verdadeiro atentado à cultura e à tradição nordestina.

*Humberto Sampaio, 49 anos, é jornalista e publicitário e também o menino da história acima.