O dia em que o presidente Jânio Quadros vai cair

Em casa, ‘painho’ e ‘mainha’ se amam muito – mas no plano político discordam cordialmente; na minha inocência infantil, tento me manter neutro

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  • Da Redação

Publicado em 14 de abril de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Boca da noite. Talvez segunda-feira. Minha mãe me dá banho caprichado. Limpa com zelo a parte de trás das orelhas. Em seguida me veste com roupa de domingo. Ela, devidamente elegante, me puxa pela mão: - ‘Vamo’, Roge! Capaz de já ter começado! Sem saber o motivo daquele chiquê, pergunto: - Pra onde, mainha? A resposta: - Vou te levar ao comício do marechal Teixeira Lott, o próximo presidente do Brasil!

Não andamos muito. Avisto então centenas de adultos se acotovelando ao redor do Belvedere Geminiano Saback, mais conhecido como Colarinho, na praça central. À minha frente encaro bundas gordas e magras de senhoras e senhores. Na retaguarda mais gente vai chegando, e eu assustado, me agarro às pernas de dona Águida. De repente voz retumbante ecoa. Ela me levanta no colo, e diz: - É ele. É Lott, Roge! Então vejo   homem grandalhão, enfiada em farda branca, rosto vermelho feito pimentão, e careca luzidia. 

[Nas semanas seguintes as coisas se esclarecem na cabeça desse meninote de 6 anos]. As eleições presidenciais de outubro de 1960 eletrizam o país. De um lado, o histriônico Jânio Quadros. Do outro, aquele sujeito feio que vira de perto, no colo de minha mãe. Em casa, ‘painho’ e ‘mainha’ se amam muito – mas no plano político discordam cordialmente. Meu pai, ferrenho udenista – partidário da União Democrática Nacional (UDN), apoia JQ. Minha mãe, o PSD (Partido Social Democrático), ao qual se filiam Teixeira Lott e Juscelino Kubitschek, o qual admira muito – votara nele em 1955 – meu pai, fiel escudeiro do par tido, preferira o cearense Juarez Távora. [Deu JK].

Na minha inocência infantil, tento me manter neutro. Gosto da cara de palhaço, da pinta de palhaço e do jeito de palhaço de Jânio. Acho bacana o jingle dele – ‘varre, varre, vassourinha, varre, varre a bandalheira...´. O de Lott? Lembrança alguma. Ambos lançam broches de campanha que viram objeto de culto da garotada. Eu prefiro o broche do candidato feio – espadinha dourada bem trabalhada. Gosto menos do broche do candidato palhaço – vassourinha do mesmo tom, meio tosca.   Enfim o enfrentamento eleitoral se dá – Jânio Quadros se elege com quase 6 milhões de votos (48% dos votos) – e mergulha o país no caos. Inflação nas alturas. Inabilidade nas negociações políticas internas. Postura diplomática internacional errática e caótica. O mito vira pó. Pra piorar, a bordo de ranço moralista-populista que, a propósito, anda bastante em voga hoje no Brasil, proíbe briga de galos, biquínis nas praias e lança-perfumes.

Pra quê?  Foto presidencial feita pelo gaúcho Erno Schneider, na qual o presidente aparece com os pés trocados e cara de pateta, se transforma em galhofa nacional.  Para alegria de minha mãe, o cara se transforma no bobo da corte – e ela provoca meu pai – e ambos riam: - Não te disse, Crispim? Esse palhaço vai cair!

[Epitáfio] [Jânio da Silva Quadros renuncia à presidência em 25 de agosto de 1961]. [Ouço no rádio, no Repórter Esso. Dou de ombros, e continuo ‘decifrando’ o romance ‘Clarissa’, de Érico Veríssimo].