O dia que Salvador parou para tietar Martha Rocha após sucesso no Miss Universo

Curta de Alexandre Robatto e reportagem de O Cruzeiro mostram grande comoção pelas ruas da cidade em 1954

Publicado em 16 de maio de 2021 às 06:30

- Atualizado há 10 meses

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Martha Rocha no Miss Universo por Foto: Divulgação

Multidão se aglomera para chegar perto da miss, em carro conversível, no Centro de Salvador (Foto: João Martins/Acervo Biblioteca Nacional) Quando o compositor Adailton Poesia começou a criar ‘Deusa do Amor’, aquela que abre dizendo “tudo fica mais bonito quando você está por perto”, passava de buzu pela frente do já extinto Castelo de Pirajá, sem saber que talvez homenageasse sem querer o dia em que Martha Rocha, a primeira e eterna Miss Brasil, tornara os vasos de cristal da Fratelli Vita ainda mais belos.   São décadas de diferença entre os dois momentos históricos da cidade – o retorno da vice-Miss Universo, em 1954, e o nascimento da deusa, em 1992 –, mas a proximidade geográfica entre os acontecimentos é um bom pretexto para relembrar os dias em que Salvador, como num Carnaval com Olodum, parou para saudar as belezas da Bahia.   Esta coluna é uma continuação do texto passado, no qual falei sobre o castelo erguido pelo clã Fratelli Vita nos subúrbios da cidade (clique para reler). O capítulo da vez envolve, portanto, os dias que marcaram a volta de Martha Rocha (1936-2020) à Bahia, com base em dois documentos históricos: uma reportagem da revista O Cruzeiro, de novembro de 1954, e o curta-metragem ‘O Regresso de Martha Rocha’ (1955), de Alexandre Robatto Filho, que mostra cenas impressionantes do retorno da estrela.

Aeroporto do Ipitanga Repórter da revista O Cruzeiro, João Martins acompanhava a baiana desde muito antes do Miss Universo, e cobriu de pertinho o desembarque dela em Salvador na volta da Califórnia, onde ficou atrás da americana Miriam Stevenson. É atribuída a ele, inclusive, a estória (aka fake news) de que a decisão dos jurados foi baseada no fato de Martha ter duas polegadas extras nos quadris. A info colou, virou até marchinha de Carnaval depois, mas o que importa agora é sua narrativa sobre a folia da volta à Bahia. Miriam Stevenson, vencedora do Miss Universo, e Martha Rocha: resultado mais injusto que Gwyneth Paltrow x Fernanda Montenegro (Foto: Divulgação) Na chamada da reportagem, abrindo com uma foto sua da miss nos braços do povo, o título "A 'Boa Terra' consagra Martha Rocha", com a linha de apoio destacando que "o trânsito parou e o comércio fechou (de verdade)".   Martins cita, de cara, a ansiedade incomum da miss, conhecida pela serenidade, no momento em que o avião “Constelation da Panair tocou o solo da Bahia e deslizou pela pista do aeroporto do Ipitanga”.   Em seu filme, Robatto mostra o momento em que ela deixa o avião e é recepcionada com beijo na testa pelo prefeito Aristóteles Góes.“No aeroporto do Ipitanga, o prefeito da capital mostra o desejo de meio milhão de baianos de Salvador. O ruído da sirene dos batedores atraiu o povo ao longo do trajeto de 25 km, onde milhares de pessoas de todas as ordens sociais queriam ver e saudar a famosa conterrânea que brilhou na América”, narra o cineasta.Já Martins comenta que “mal puseram a escada e lá se foi ela, arrebatada, escoltada, aclamada, glorificada”, antes de relatar que “apesar do aeroporto ficar a uns 30 km da capital, lá estava uma multidão entusiasta”, além de uma banda dos Bombeiros e “uma delegação do clube de Regatas Vitória, o Flamengo baiano”. Risos.

“Já pelo caminho, onde houvesse uma casa, havia gente à beira da estrada para vê-la e para dar-lhe as boas-vindas”, “o comércio fechara e o trânsito parara”, são outras anotações do repórter, antes de explicar que não se tratava de “uma festa organizada nem planejada: era a homenagem espontânea de um povo que via naquela moça a glorificação da beleza das suas filhas e das suas tradições de civilização que ela soubera honrar no estrangeiro”. Após o Miss Universo, Martha passou alguns dias nos EUA, antes de retornar ao país (Foto: Divulgação) Para ele, o cortejo foi um “ideal irrealizável de qualquer político demagógico”, e destacou o curioso comentário feito pelo prefeito: “Martha não é de outro planeta porque é da Terra! Sendo da Terra, é da América! Sendo da América, é do Brasil! Sendo do Brasil, é da Bahia! Martha Rocha não se dá, não se empresta, não se vende, porque pertence à Bahia!” Oxe.  Cinderela baiana A descrição do prefeito é tão curiosa como a do próprio repórter, ao descrever a comoção geral na chegada dela ao Palácio da Aclamação, onde fora recebida pelo governador Régis Pacheco.“Gente chorava. (...) Ao seu aparecimento, todos os rostos eram uma expressão de alegria e embevecimento. Se algum paralítico saísse andando naquele momento, não duvidem, teríamos uma nova ‘santa’ milagrosa a essas horas”, analisa Martins, que além de tentar antecipar o feito de Irmã Dulce, também conferiu à sua perfilada, bem antes de Carla Perez existir, o título de “Cinderela baiana”.Robatto, outro que se refere a Martha como uma espécie de Cinderela, narra as cenas que provam o entusiasmo do repórter. “Agora Salvador acorre em peso às ruas para ver em carne e osso a célebre moça bonita que fechou o comércio. As repartições públicas ficaram desertas, os balcões e escritórios foram abandonados, e na Rua Chile verdadeira multidão se comprimia, vibrando, na maior demonstração já feita em Salvador à graça e aos encantos da mulher”.   Filha do cineasta, a atriz e jornalista Sônia Robatto, 83 anos, contou à Baianidades que o curta, de 8 minutos, foi uma peça de propaganda bancada pela Fratelli Vita. “Foi um dos poucos filmes encomendados de meu pai”, conta a filha de Alexandre Robatto (1908-1981), que acompanhou de perto parte das filmagens.“No dia, eu estava defronte do Cine Guarani [atual Cine Glauber], na Castro Alves. Eu lembro que foi a coisa mais cheia de gente que eu já vi na minha vida. E o povo gritando muito. Não foi uma coisa simples. Estavam eufóricos por ela”, relembra ela.Povo e elite Mas o que explica tamanha euforia por Marthinha? Para Sônia, sua conexão com as pessoas. “Ela era uma pessoa muito simples, e a sociedade baiana toda trabalhou para ela ganhar. Mas não foi só isso. Tem uma história conhecida, antes de ela ser miss, de um caminhoneiro que parou o caminhão, na Barra, e se ajoelhou pra prestar reverência”, menciona.

[Outro cineasta, Salomão Scliar, também comenta no artigo "Miss Brasil, a Bahia de olhos azuis", na revista Manchete, que Martha havia sido responsável por um naufrágio na mesma Barra onde morava: estava na praia, uma lancha cheia de marmanjo passou, todo mundo correu pra vê-la na areia, o troço virou].   João Martins também destaca que “povo e elite” a abraçaram. Na primeira folga que teve das homenagens e festas, Martha foi ao Bonfim, na companhia do pai, Álvaro Pereira Rocha, professor da Escola Politécnica, e do repórter. Martha Rocha faz oração de agradecimento, após volta dos EUA, na Igreja do Bonfim (Foto: João Martins/Acervo Biblioteca Nacional) “Só teve mesmo tempo de uma rápida prece, pois o povo a descobriu e ela teve de se retirar antes que o templo do santo mais querido da Bahia perdesse a sua paz”, comenta o jornalista.   Dentro do carro, Martins perguntou sobre os pedidos feitos por ela ao Senhor do Bonfim. “Eu não fui lá para pedir nada. Fui apenas para agradecer a sua proteção, a felicidade que ele me tem dado”, respondeu, antes de listar os presentes e promessas que recebera após o sucesso – de blusinhas a carro e joias.

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Uma dessas (um broche diadema) foi recebida no baile de gala em sua homenagem, dado pelo Clube Bahiano de Tênis, “o mais ‘fechado’ e aristocrático de Salvador”. No seu registro, Robatto comenta que “a sociedade tinha os olhos vivos na esplendorosa beleza de uma de suas filhas, que havia sabido aliar aos dotes físicos uma elegância de atitudes, uma nobreza de sentimentos que a fizeram mais do que uma rainha de beleza, uma embaixatriz da inteligência e da dignidade da mulher brasileira”. Recepção com baile de gala para Martha Rocha no Bahiano de Tênis, na Barra (Foto: João Martins/Acervo Biblioteca Nacional) Castelo da imperatriz Antes de encerrar o “conteúdo patrocinado” com o informe de que “a Fratelli Vita orgulha-se de haver divulgado seu sucesso na imprensa escrita, falada e projetada do Brasil”, o cineasta mostra a visita da miss ao Castelo de Pirajá, residência da família ítalo-baiana que fabricava os famosos refrigerantes e cristais.   Após aparecer descansando nas dependências do palácio, com os pais, na aprazível Pirajá cinquentista, assume o papel de garota-propaganda.   “Moça muito sensível, Martha viu-se atraída por um jarro de cristal. Escute, Martha, você quer ver como se fabrica um jarro desse?”, pergunta Robatto, ao que ela responde positivamente com um sorriso tão reluzente quando o objeto valioso que segura, embora com as duas polegadas de beleza a mais que balançaram os mais fortes alicerces que têm nesse mundo.