O dono da casa está de volta

Jogo de búzios aponta Aninha de Xangô como a nova ialorixá do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá e sucessora de Mãe Stella de Oxóssi

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 29 de dezembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr

O mesmo nome, o mesmo orixá, o mesmo desafio. Ana Verônica Bispo dos Santos, 53 anos, escolhida nesse sábado a nova ialorixá de um dos mais respeitados terreiro de candomblé do Brasil, é a sexta mulher a suceder Eugênia Anna Santos, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, em 1910. Quase um século separa os nascimentos das Aninhas, mas, a partir de agora, quase nada separa os seus propósitos de vida: unir o povo de santo. 

O anúncio veio antes mesmo das 10h: “Aninha de Xangô!”. Quando o babalorixá Balbino Daniel de Paula, o Obaràyí, proferiu o nome da nova mãe de santo do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, houve reações das mais diversas. Todos de branco, boa parte aplaudiu, outros demonstraram surpresa, alguns poucos pareciam contrariados. 

Mas, a maioria comemorou o retorno de Xangô, patrono da casa, como dono do “ori” (cabeça) da escolhida. “Xangô voltou para reinar em sua terra. Kaô Kabecile!”, saudaram, e iorubá, os filhos e filhas de santo, referindo-se não só ao fato de Xangô ser o patrono do terreiro, mas também à coincidência (ou não) de o Xangô da escolhida ser da mesma “qualidade” do Xangô da fundadora. No caso, Xangô Afonjá. Como se vê, as semelhanças de Ana Virgínia com Eugênia Ana são grandes. 

Inicialmente, esperava-se que a escolhida fosse uma das quatro sacerdotisas do chamado Conselho Religioso, formado por mulheres mais experientes, quase todas idosas. A indicação de Aninha surpreendeu muita gente, principalmente a própria. “Eu não esperava por essa surpresa e essa grande responsabilidade”, disse em seu discurso Mãe Aninha, sucessora de Mãe Stella de Oxóssi, que morreu em 27 de dezembro do ano passado. “Estou perguntando a mim mesma porque Xangô me escolheu”, indagou.

 Mãe Aninha sabe que tem a missão de acalmar os ânimos e minimizar os estragos causados por um racha no terreiro, antes de Stella partir para o “orun” (lugar para onde vão os ancestrais). Tanto que os dias que antecederam a escolha da nova ialorixá foram cercados de mistérios e especulações sobre as influências políticas que envolviam a sucessão. 

A mão do jogo de búzios, por exemplo, só foi revelada pouco antes do fim do último dos quatros axexês (rituais fúnebres do candomblé), após sete dias de obrigações, no meio da manhã desde sábado, quando se completou um ano do falecimento de Mãe Stella. 

Conforme o CORREIO havia sinalizad, Balbino de Paula foi o responsável por interpretar o ifá (jogo de búzios).  Aberto não só aos filhos e filhas de santo da casa, mas também ao público em geral (com proibição de fotos e vídeos), o jogo se deu no barracão principal. Ao jogar a primeira vez, Balbino garantiu que seria uma sucessão tranquila e a nova ialorixá teria uma trajetória feliz. Em seguida, no segundo jogo, foi sugerido que a nova ialorixá seria de Xangô. A plateia reagiu com empolgação e todos os filhos de Xangô “viraram no santo”, ou seja, incorporaram.   

Um novo jogo indicou que a corte de obás (espécies de ministros da casa), acompanhados por Obaràyí e por todas as filhas de Xangô, seguissem até a casa do patrono do terreiro para a confirmação de quem seria a nova ialorixá. O CORREIO apurou que uma das filhas de santo chegou a pedir para não ser escolhida. Após consulta direta ao orixá a portas fechadas, na Casa de Xangô, se definiu o nome de Aninha. Obaràyí então retornou ao barracão para anunciar a nova líder do terreiro.  

Sucessão tranquila - Ana Verônica Bispo dos Santos é pedagoga, professora da escola particular Rosa dos Ventos, em São Gonçalo do Retiro. É mãe de Rodrigo Carlos Bispo Santos, 26 anos, iniciado em outra casa de axé e que hoje mora no Rio de janeiro. Há 31 anos, Mãe Aninha foi iniciada por Mãe Stella de Oxóssi. Assume aos 53 anos, quase da mesma idade de Stella quando iniciou sua jornada no cargo que ocupou com 50.  

Apesar de considerada jovem para o posto que vai assumir, Mãe Aninha é tida como uma mulher inteligente e de boa bagagem dentro do candomblé. Sua família vem de uma linhagem tradicional na religião. Ana é filha da Iyamorô Deise e do Babalorixá Flaviano Santos, o Flaviano de Nanã do Terreiro Obá Nã, uma tradicional casa de axé localizada em Areia Branca, Lauro de Freitas.  Ribamar Daniel, da Sociedade Cruz Santa, garantiu apoio a Mãe Aninha (foto/Betto Jr)  Após a escolha de Aninha, a sensação geral era de satisfação. Filhos e filhas de santo se abraçavam, alguns até choravam de emoção. Mãe Aninha é tida como uma mulher conciliadora, que tem boa relação com todas as alas da casa. “É uma pessoa do bem, super querida, maravilhosa. De uma família de tradição”, afirmou a equede de Iansã Silvana Moura. 

Sobrinha neta de Mãe Stella de Oxóssi, Reina de Azevêdo Santos, 20 anos, disse que esse é um momento de alívio para a família. “Depois da perda de minha avó e de um ano de axexê, a gente sente alívio, né? Xangô sabe e sempre soube o que tem que fazer. Acho uma grande honra ter uma pessoa de Xangô Afonjá comandando. Aninha é muito querida e inteligente”, elogiou.

O presidente da Sociedade Cruz Santa, que administra o Ilê Axé Opô Afonjá, Ribamar Daniel explicou que Mãe Aninha ainda vai definir qual a data de sua posse, quando haverá uma festa pública no barracão. Ele disse que Aninha terá ao seu lado 12 obás de Xangô para tomar as decisões. Eles são os conselheiros da casa. Nas festividades, seis obás sentam à direita e seis à esquerda da ialorixá. Os seis da direita têm direito a voz e voto e os seis da esquerda têm direito apenas a voz. 

Ribamar garantiu que Aninha tem o apoio da Sociedade Cruz Santa e da comunidade para que o Afonjá volte a ser um terreiro unido: “Estamos todos com ela pelo Afonjá”. Com a escolha, o Ilê Axé Opô Afonjá está oficialmente reaberto após um ano de luto. Na quarta-feira, a Casa de Xangô vai ser reaberta e será servido o amalá, a comida preferida do orixá. 

Representantes de outros grandes terreiros de Salvador, como a Casa Branca e o Oxumarê, marcaram presença na cerimônia de sucessão. “Desejamos que ela tenha uma liderança firme e de muito amor”, disse Ebomi Nice, da Casa Branca. Até mesmo um padre esteve na sucessão. “É uma religião que precisa de respeito, que foi violentada e incompreendida muitas vezes. Vim ver de perto esse momento importante”, afirmou padre Lázaro Muniz, ex-pároco da Igreja do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, hoje na Paróquia Santa Cruz, no Engenho Velho da Federação.

Família de tradição - Pesquisadores e lideranças religiosas interpretam a escolha de Mãe Aninha como o início de um ciclo de justiça e o resgate da ordem no terreiro. “Vai haver um resgate de tudo aquilo que se refere à justiça, sobretudo entre a própria comunidade e sob o crivo de Xangô”, afirma Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA). 

“Uma decisão certa das químicas religiosas. Ana é uma pessoa extremamente competente, viveu a vida inteira dentro de terreiro. É uma decisão religiosa, oriunda de um jogo feito por um homem importante, feito com todo o cuidado para uma casa religiosa tão imensa como o Afonjá”, disse o antropólogo Júlio Braga, um dos que estava aos pés de Xangô no momento da escolha. Pai Blabino, do Terreiro Aganju, foi responsável pelo jogo que escolheu Mãe Aninha como mãe de santo do Afonjá (foto/Betto Jr) “Pense três, quatro vezes antes de tomar decisões”

O nome de Balbino Daniel de Paula, o Obaràyí, 79, escolhido para fazer o jogo de sucessão, foi antecipado pelo CORREIO 20 dias atrás como um dos favoritos para a função. Balbino, que esteve presente como espectador na escolha de Mãe Stella, é uma das maiores autoridades masculinas dos candomblés do Brasil. 

Babalorixá do Terreiro Aganju, em Lauro de Freitas, foi iniciado por Mãe Senhora, a terceira Mãe de Santo na linha sucessória do Afonjá e mãe biológica do famoso sacerdote e escultor Mestre Didi. Coube a Balbino interpretar o jogo que escolheu Aninha de Xangô. Obaràyí é hoje o homem mais antigo ligado à casa, o único vivo que não foi iniciado por Stella e é filho de Xangô. 

Para ele, o grande desafio da nova ialorixá é recuperar o respeito do Ilê Axé Opô Afonjá. Experiente, deu alguns conselhos para a nova líder. “Pense bastante antes de fazer as coisas. Pense três, quatro vezes. Seja firme, forte”, indicou Balbino. “Assumir uma casa de candomblé como o Afonjá é muito peso! Só vai depender dela aguentar! Ela tem que fazer com que as pessoas mais experientes que estão em volta dela mostrem os caminhos”, pontuou. 

Balbino disse que foi apenas o mediador da escolha de Xangô, mas que não conhece muito a nova ialorixá: “Devo ter visto essa menina três, quatro vezes”. E desejou “o melhor” para ela: “Eu desejo tudo de bom. De coração mesmo!”

Balbino acha que Mãe Aninha tem uma grande missão na vida a partir de agora. “A grande dela missão é trazer o Afonjá de volta, limpar o nome do terreiro. Na Bahia não tinha casa com mais fama do que o Afonjá. É uma responsabilidade muito grande", insistiu Obaràyí.

Documentos históricos do terreiro

O advogado Ed Machado, 49, veio do Rio de Janeiro cumprir uma missão importante no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Logo após a escolha da nova ialorixá, entregou nas mãos de Mãe Aninha um conjunto de documentos que certamente será analisado com cuidado pela nova líder. Trata-se de um livro com atas de fundação do axé desde a primeira reunião em que a fundadora do terreiro, a outra Mãe Aninha, estabeleceu as diretrizes para a constituição da casa. 

Por um ano, ele foi o guardião do material, que traz informações sobre as primeiras assembleias e de como se formou a sociedade civil, o corpo de obás e tudo o que regula a casa desde 1910. O documento, segundo Ed, vem sendo passado de ialorixá para ialorixá. A assinatura de Mãe Aninha está estampada em várias páginas do livro.  Livro funciona como uma espécie de estatuto do axé (foto/Betto Jr.) Mas, porque tudo isso foi parar nas mãos de um advogado no Rio? É que quando mãe Stella faleceu, ele foi incumbido de buscar objetos pessoais da ialorixá que estavam com sua esposa, Graziela Domini. Os objetos seriam utilizados para a cerimônia fúnebre, o axexê. “Nesse momento, ela me passou essa documentação para entregar à nova ialorixá. Passei a ser o guardião”, explicou.

De acordo com o advogado, que é filho de santo do Ilê Axé Opô Afonjá do Rio de Janeiro, o documento, além da importância histórica, tem importância jurídica porque faz referência à propriedade de terra do Afonjá: “Sem falar que, quando ela (a nova ialorixá) tomar leitura desses documentos, vai saber o posicionamento de Mãe Aninha sobre algumas questões”.