O ensino remoto e as lições do coronavírus para a educação escolar

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Publicado em 25 de abril de 2021 às 16:00

- Atualizado há um ano

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Há um ano, a pandemia do novo coronavírus vem forçando os poderes estatais a adotarem medidas de distanciamento social, com o intuito de conter a disseminação comunitária do vírus. Assim como aconteceu com as demais esferas societárias, a educação escolar assistiu a uma mudança abrupta da sua rotina. Obrigadas a manterem um ciclo de fechamento e reabertura de suas portas, as escolas públicas e privadas tiveram que se adaptar a esse contexto emergencial, em uma tentativa de contenção dos prejuízos com os processos de ensino-aprendizagem. Agora que completamos um ano letivo trocando as salas de aulas pelas telas dos computadores e dispositivos móveis, é chegada a hora de se refletir quais lições a crise sanitária tem sugerido para a educação escolar. Comecemos, pois, por entender a escola em seu tempo de gestação.

Segundo Paula Sibilia, a escola é uma das instituições, ao lado das fábricas, hospitais psiquiátricos e prisões, que surgiu no período concomitante às revoluções burguesas com o ideal de disciplinar e formatar corpos dóceis e úteis à economia capitalista. Para a autora, temos que reconhecer os dispositivos escolares enquanto tecnologias do final do século XVIII, período em que a sociedade se considerava igualitária, fraterna e democrática. Era preciso, então, assumir a responsabilidade de educar todos os cidadãos, ensinando-os a ler, escrever e fazer operações matemáticas, em um processo de padronização da multiplicidade. 

Na aurora do capitalismo, a rígida separação entre as esferas pública e privada orquestrou a construção de um sujeito solipsista, cuja subjetividade seria vista como uma espécie de esconderijo ao qual poucas pessoas poderiam ascender. Em outras palavras, o individualismo moderno era quase equivalente à vida internalizada. Consequentemente, a escola, com sua lógica de confinamento, adequava-se aos ideais da época.

Porém, aponta Sibilia, o isolamento e a vida interior são relíquias de um passado cada vez mais distante. Em um mundo dominado por novas tecnologias portáteis e redes digitais, não há mais espaço para subjetividades internalizadas. A velha intimidade tem se permitido dialogar com várias intrusões do que acontece no ambiente online. Levando em consideração esse contexto, alunos e professores facilmente assimilariam o ensino remoto emergencial.

Surpreendentemente, não foi bem isso o que aconteceu. Uma rápida olhada em artigos publicados pelos jornais mais importantes do mundo - como The New York Times, The Washington Post e The Guardian - sobre o ensino virtual nestes tempos de pandemia, bem como o compartilhamento de experiências por parte dos sujeitos da educação que estão vivenciando todo esse processo, notadamente alunos e professores, pode revelar algumas previsões diferentes.

Embora o coronavírus possa reviver as ideias da educação domiciliar, o que estamos vendo é uma enxurrada de preocupações, ansiedades e reclamações em relação à educação mediada pelas tecnologias digitais. Enquanto o Zoom e o Google Meet, entre outras plataformas, foram adotados pelas escolas em substituição às aulas presenciais, professores e alunos, sem falar em vários especialistas, de pediatras a cientistas da computação e psicólogos, estão descrevendo problemas e até danos gerados pela instrução virtual.

Em verdade, o ensino remoto emergencial tem sido inábil em manter a ilusão da igualdade. O poder disciplinar da escola funcionou por meio da uniformização e confinamento dos alunos na sala de aula. Compartilhando o mesmo espaço e vestindo o uniforme escolar, todos parecem iguais na frente dos professores. Agora, com a instrução virtual, algumas disparidades se tornaram mais claras, a saber: aqueles alunos com conexão de banda larga confiável junto com um local tranquilo para estudar e terminar as avaliações e aqueles sem essas condições; os alunos que possuem um único laptop ou tablet e os que compartilham esses hardwares com vários parentes; aqueles pais que podem ajudar seus filhos a ligar um dispositivo, fazer login em um aplicativo, entender as instruções, clicar no local correto, digitar respostas e manter as tarefas e aqueles que não têm tempo para realizar esse acompanhamento pedagógico; aquelas crianças que dependem das escolas para refeições gratuitas, acolhimento psicológico e atividades extracurriculares enquanto os pais estão ocupados e aquelas cujas matrículas escolares não estão vinculadas a serviços sociais e políticas de assistência; e os países que pontuam as taxas mais altas em desempenho digital, como Finlândia, Suécia e Dinamarca, e aqueles que ainda têm um longo caminho a percorrer, como o Paquistão, cujo ensino remoto é um único canal de televisão.

Ainda há que se mencionar aqui o debate pedagógico que a pandemia do novo coronavírus trouxe à tona. Em várias experiências de instrução virtual realizadas ao redor do mundo, as lições consistem em ritos de memorização, em que os professores recitam os conteúdos presentes nos livros didáticos, trazendo para as telas dos computadores e dos aparelhos móveis as narrações que seriam feitas nas aulas presenciais.

De outra ponta, na medida em que os docentes estão literalmente pilotando o avião enquanto o constroem nada impede que os passageiros, ocasionalmente, saibam mais sobre as instruções de voo do que os próprios comandantes da aeronave. Corriqueiramente, professores têm percebido que seus pupilos sabem manipular melhor do que eles as plataformas digitais, possibilitando a inversão na tradicional hierarquia do saber. É como se a crise sanitária, em seus impactos na educação, trouxesse a lume todas as afirmações de Paulo Freire sobre a intercambialidade entre os papeis de professor e aluno.

 Assim, o acompanhamento do relato das experiências dos sujeitos da educação, no que se refere ao ensino remoto emergencial, nos coloca diante de problemas da prática educacional de nossa época, notadamente aqueles relacionados ao lugar da escola enquanto espaço de socialização dos sujeitos e detentora do monopólio de produção de conhecimentos formais. A pandemia do novo coronavírus, ao forçar as instituições escolares e seus profissionais a encontrarem uma maneira de se garantir a continuação das atividades letivas, nos oferece um momento oportuno para se questionar, uma vez mais, os processos educativos centrados na figura do professor e dos conteúdos obrigatórios que ele deve ministrar indiscriminadamente a todos, desconsiderando as especificidades sociais e psicológicas dos sujeitos.

Em outras palavras, se por um lado, a crise sanitária provocada pelo vírus obrigou o reconhecimento do aparato escolar como imprescindível para a promoção dos direitos sociais para além da educação, por outro, a instrução virtual nos direciona a repensar as escolas no tocante às suas funções de homogeneização e disciplinamento do corpo social.

A questão aqui não é simplesmente levantar questões sobre a impropriedade de se transpor o modelo da aula expositiva para as plataformas virtuais, mas de chamar a atenção para o fato de o chamado ensino remoto emergencial, na maioria das vezes, não ter levado em consideração os saberes digitais daqueles que já estavam bastante acostumados com as vivências peculiares a uma sociedade da cibernética, quais sejam, as crianças e os adolescentes, a assim denominada geração millennials. 

Enfim, mais uma vez colocados à margem dos processos de ensino-aprendizagem, esses sujeitos vivenciam agora na tela de seus computadores e celulares inteligentes a aflição e a apatia que eles já sentiam nas aulas presenciais. Mesmo no momento em que a escola e as novas tecnologias de comunicação se encontraram, a fusão de horizontes entre o mundo dos estudantes e o mundo dos professores proposta por Paulo Freire dificilmente tem acontecido.

Hildon Oliveira Santigo Carade é Professor de Sociologia do IF BAIANO, campus Santa Inês

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