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Nelson Cadena
Publicado em 15 de dezembro de 2022 às 05:00
Eu atingi o êxtase, vou contar para vocês. Não foi do jeito imaginado. Na minha adolescência, segui todas as recomendações da cartilha universal: li os livros sagrados, meditei, ensaiei posturas de yoga, passei horas na posição de lótus, bebi chás de ayahuasca, datura e cogumelos, até vesti batas brancas de guru e deixei a barba crescer nos conformes. E emergi em Arembepe para ver o cometa Kohoutek passar e me enebriar do pó cósmico e, nessa busca por uma exaltação mística, não me dei conta que eu já tinha vivido antes momentos de êxtase, vou contar para vocês.>
O meu primeiro momento de êxtase ocorreu na casa de minha avó materna. Eu tinha quatro anos de idade quando atingi a plena contemplação, a consciência cósmica, me senti iluminado quando vovó me serviu no almoço uma sopa de letrinhas. E eu fui montando, na beira do prato, as palavras recém-aprendidas e escrevi gato, escrevi vaca e escrevi meu nome e fiquei triste quando uma das letrinhas se desfez. O meu segundo momento de contemplação espiritual foi dias depois, quando minha avó me serviu uma sopa de estrelinhas e eu montei na beira do prato uma constelação, perguntei pela lua, não tinha; as estrelinhas que não cintilavam flutuavam no caldo, pareciam ter vida.>
Se você leitor nunca tomou sopa de letrinhas, ou de estrelinhas, pode parar por aqui, não vai entender o que significa ter momentos de êxtase. A não ser que você tenha comido aqueles biscoitinhos de leite em formato de animais, mastigado o elefante, a galinha e a vaquinha, o leãozinho e perguntado o porquê não tinha biscoitinhos no formato de aranha. Se você comeu, tem um sentimento aproximado do que é êxtase, esse estado de contemplação que não se explica, mas saiba que se não montou palavras na beira do prato da sopa de letrinhas, não é êxtase genuíno.>
Não se avexe por isso. Se você um dia comprou para seu filho chocolates em formato de animais e vivenciou a alegria dos moleques comendo as pernas do macaco, o pescoço da girafa, o bico do pato, ou a cabeça do coelho, e contemplou os olhinhos deles, virados de alegria, na descoberta gustativa, você está se aproximando do que é êxtase. Ainda que não tenha tido a experiência espiritual, plena, de escrever o seu nome na beirada do prato de sopa de letrinhas.>
Eu devia ter lembrado desses momentos da minha infância quando fui buscar o êxtase, na contemplação do Kohoutek, em Arembepe. Nenhuma daquelas estrelas brilhantes, cintilantes, que o céu generoso derramava todas as noites na aldeia hippie teria o mesmo poder de sedução da sopa de estrelinhas. Esta, sim, uma experiência espiritual intensa. Dizem que o Kohoutek não volta, melhor assim. Não foi visto no hemisfério Sul. Os astrônomos asseguram que ele se dividiu, a sua cauda estelar não teve a dimensão que a ciência calculou. Mas, o Halley, esse sim retorna, lá no ano de 2056, cumprindo o seu ciclo.>
Não estarei vivo para assistir a sua passagem pelo nosso planeta. Meus filhos e netos estarão, assim espero, no mundo real, presencial para usar uma expressão da moda, que se consolidou na pandemia. Eu estarei presente também para assistir o Halley, no plano virtual, na plataforma que meu espírito captar, o melhor link. E prometo que enquanto o cometa iluminar o mundo com a sua cauda estelar, eu estarei escrevendo o nome de meus seres queridos, todos eles, com letrinhas de sopa, uma a uma, montando o quebra-cabeças do amor que, desconfio, seja o próprio êxtase.>
Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras>