O inferno no peito de Leonard Cohen

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  • Paulo Sales

Publicado em 29 de março de 2021 às 05:01

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Ouço seguidas vezes If It Be Your Will, de Leonard Cohen. É mais do que uma canção. É uma prece, um hino de louvor, glória e misericórdia. Um cântico de amor, devoção e desapego, capaz de nos fazer arrancar os pelos do coração. “Se for a sua vontade /Que uma voz seja verdadeira /Desta montanha partida /Eu vou cantar para você”. Quando perguntaram a Cohen qual canção gostaria de ter feito, ele respondeu: “If It Be Your Will. E eu fiz.”

Na verdade, escuto todos os dias essa e muitas outras canções desse poeta que pertence ao meu panteão particular de deuses. Talvez porque esteja lendo I’m Your Man, alentada biografia do artista escrita pela jornalista Sylvie Simmons. A imagem que emerge do livro é a de um indivíduo modesto, cativante e profundamente vulnerável. Em determinado momento da vida, com mais de 50 anos, tendo seu talento reconhecido em todo o mundo ocidental e desfrutando dos prazeres hedonistas e epicuristas que cultivou ao longo de décadas, Cohen sai em busca da própria verdade.

Sua experiência – primeiro em um monastério budista no alto de uma montanha gelada e depois em Mumbai, na Índia, onde assimilou os ensinamentos de um mestre hindu – me lembra o desconforto espiritual de Larry Darnell, personagem do romance O Fio da Navalha, de W. Somerset Maugham. Veterano da Primeira Guerra Mundial, Larry guarda um trauma: um companheiro de batalha se sacrificou para salvá-lo em combate. Isso faz com que abandone uma vida confortável para tentar descobrir sua essência no Extremo Oriente.

Não há, ao que se saiba, motivo tão dramático na vida de Cohen para que tenha agido de forma semelhante. Mas ele vivia um momento de profunda depressão quando se refugiou na montanha gelada. Levou anos para se livrar dela. “Que fazer, com o inferno no peito?”, perguntava-se Maiakovski em A Flauta Vertebrada e provavelmente o velho Leonard ao se ver diante do abismo. Ele buscou na espiritualidade o que a vida material – farta, mas insuficiente – não entregava. Judeu de nascimento, converteu-se ao zen budismo e acabou salvo pelo hinduísmo.

Mas o que realmente motivou esse esforço obstinado por transcendência, cuja rotina estóica incluía acordar às 3 da manhã para meditar em um ambiente gelado e silencioso? Que necessidade misteriosa justificava a supressão dos confortos e prazeres de uma vida aparentemente plena, ainda mais em se tratando de um mulherengo irrefreável como ele? Norman Mailer escreveu, em Os Nus e os Mortos, que o estado natural do homem do século 20 é a angústia. Cohen foi um legítimo homem do século 20, tateando angustiado por algum sentido nesse oceano de interrogações que é a vida.

Creio que alcançou o Satori, a iluminação, mesmo que momentânea. Ou quem sabe ele mesmo tenha sido uma espécie de iluminação, um Sidarta sorridente, safado e sedutor. Ao assistir a um show que fez em Londres em 2009, já velhinho, me vem a certeza de que estava plenamente realizado. O oposto do jovem amargurado e de olhos vidrados de outra apresentação, em 1970, na ilha de Wight, também na Inglaterra. Foi uma trilha árdua e tortuosa que separou as duas aparições, mas que lhe abriu caminho para a eternidade.