O jazz de ontem, a brutalidade de hoje

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  • Paulo Sales

Publicado em 11 de abril de 2022 às 05:07

- Atualizado há um ano

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Escuto agora A Night at Birdland, álbum do quinteto liderado pelo baterista Art Blakey e um dos mais poderosos registros ao vivo dessa arte única chamada jazz. Entre tantos músicos excepcionais – Lou Donaldson, Horace Silver e o próprio Blakey – figura acima de todos o nome de Clifford Brown. Um jovem deus negro cuja onipotência se dava através do trompete. Na minha modestíssima opinião, Brown é o maior de todos, aquele que deu forma definitiva à arte de tocar o instrumento.

Poucos músicos de jazz me emocionam tanto quanto Clifford (há outros: Miles Davis, John Coltrane, Thelonious Monk, Lester Young, Lee Morgan, Oscar Peterson). E o que mais me comove, quando ouço seu fraseado cálido, vertiginoso e muitas vezes impregnado de lirismo, é o fato de sempre lembrar do quanto sua vida foi breve. Brevíssima. Clifford Brown morreu aos 25 anos num acidente de automóvel. Sim, aos 25 anos.

Nenhum outro trompetista tocou do mesmo jeito, formulando frases contínuas sem parar para respirar, como se despejasse uma torrente ininterrupta de ternura. Ouçam sua interpretação do tema Once in a While e comprovem o que tento expressar. Dizem que ele era um sujeito generoso e boa-praça, o que não duvido. Seu jeito de tocar era típico de quem estava de bem com a vida. Pena que a vida não estava de bem com ele.

Enquanto o disco avança, fico imaginando o quanto Clifford ficaria surpreso ao saber que em 2022, 66 anos após sua morte, um homem no Brasil estaria se comovendo com a nobreza e a sofisticação da sua música. Isso porque Brown – negro, discriminado numa terra racista e dotado de poucos recursos financeiros – morreu sem ter plena consciência da sua avassaladora importância para o curso do jazz, embora já fosse reconhecido em vida como um dos maiores.

Uma coisa da qual Clifford Brown certamente não se surpreenderia é o fato de que, no mesmo Brasil, jovens negros como ele continuam sendo vítimas de racismo como no seu tempo. E pior: continuam sendo mortos por quem, em tese, deveria protegê-los. Embora Clifford não tenha sido morto por um policial, é bem provável que tenha sido achacado e agredido por um deles. Se Miles, no auge da fama, foi surrado por um guarda branco de cassetete, por que Clifford não seria?

As sociedades evoluem, é claro. A escravidão, outrora normalizada, é hoje deplorada. Mas pelas bandas de cá parece que não é bem assim que funciona. Pessoas de pele preta são alvos quase diários nas mãos de policiais muitas vezes brutalizados, corruptos e despreparados, que contam com a certeza da impunidade.

Cauã da Silva Santos não era um trompetista genial como Clifford Brown. Segundo a família, era um bom lutador de jiu-jitsu e integrava um projeto social. Um garoto cheio de aspirações, como nossos filhos. Na semana passada, Cauã foi baleado no peito por um policial em Cordovil, Zona Norte do Rio. Tinha 17 anos. Depois do tiro, os agentes ainda jogaram o corpo do rapaz em um valão, de onde foi retirado pela população. Testemunhas relatam que não houve qualquer confronto ou algo do tipo no momento em que ele foi morto.

Cauã foi executado à queima-roupa. Não é o primeiro e nem será o último. Segundo um estudo do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Rio Janeiro tem a polícia que mais mata no Brasil. Apenas em 2020, foram 1.245 mortes durante operações policiais. Não precisa ser um adivinho para saber a cor da pele da maciça maioria das vítimas.

Essa carnificina rotineira é algo muito maior e mais aterrador do que simplesmente política pública. Estamos diante de um vespeiro que nenhum governante parece capaz de cutucar – alguns até preferem se associar a ele. O Brasil é um país terrível para quem, na prática, não tem direitos respeitados, caso da gente muito pobre e muito preta que habita as comunidades aviltadas pela violência policial. Afinal, como disse Caetano, pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos.

Alguém poderia indagar: mas essa crônica é sobre jazz ou sobre violência? O que o jazz de ontem tem a ver com a brutalidade de hoje? Eu diria que quase tudo. Porque não devemos esquecer que o maior gênero musical surgido no século 20 nasceu em guetos negros, onde era tocado basicamente por gente muito preta e muito pobre, como uma forma de expressão e desabafo. Jovens talentosos e irrequietos como Clifford Brown, que viam na música uma saída, uma válvula de escape, um passaporte para algo que se assemelhasse a um projeto de futuro. Como o jiu-jitsu devia ser para Cauã.