O mistério da Igreja de Baiacu, esquecida pelo poder público e abraçada pelo candomblé

Um dos templos mais antigos do país, edificação na Ilha de Itaparica é uma metáfora da religiosidade da Bahia

Publicado em 15 de março de 2020 às 15:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: .
. por Fotos: Júlia Sarmento

As árvores que sustentam uma das igrejas mais antigas do país são as mesmas que, possivelmente, vão destruí-la.

A Igreja de Baiacu pertence ao distrito de Vera Cruz, na Ilha de Itaparica. Foi construída em 1560 sob ordem, ao menos em uma das versões mais difundidas, de uma marquesa de Portugal que assumiria a área no regime de sesmaria – terras doadas pelo rei para a produção agrícola.

Religiosa ao extremo, a marquesa mandou construir a igreja antes de sua chegada, o que custou o suor e sangue escravo para levantar a edificação no alto de uma colina. Mesmo depois de pronta, sabe-se lá por qual motivo, a marquesa não tomou posse da terra, legando o templo religioso para a comunidade pesqueira ali formada. Frente da Igreja de Baiacu, sustentada pelas árvores (Foto: Júlia Sarmento) Nas águas mornas da ilha, ainda mais no século XVI, o baiacu era visto (e pescado) com enorme facilidade. É preciso manejo no preparo da iguaria. O baiacu tem uma bolsa de veneno que precisa ser retirada antes de colocá-lo na panela. Outra característica curiosa deste pescado é sua habilidade ante a ameça de um predador.

Ele é um peixe-balão, que incha para assustar e repreender ataques. No baianês atual, diz-se que, deriva dele a expressão “pegar ar”, quando alguém se irrita com alguma caçoada. No baianês atual, a vila de Baiacu tornou-se, extraoficialmente, ‘Baiaco’, para evitar a rima fácil da última sílaba.

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Pelo mesmo motivo, mas sem conexão aparente (ao menos, aparente), em uma outra parte do Recôncavo baiano, o mais importante jogador que já vestiu a camisa do Bahia enfrentou o mesmo dilema tônico.

Edvaldo dos Santos, nascido em São Francisco do Conde, fazia bico e ficava emburrado na infância quando o mimo não vinha a contento. “Fica inchado igual ao peixe baiacu”, conta o pai. Quando começou a demonstrar talento para o futebol, a substituição foi forçada pela mesma sonoridade do sufixo.

Baiaco é o jogador que mais vestiu a camisa tricolor na história. Foi heptacampeão baiano (1973-1979) e marcou nada menos que Pelé, em sua busca pelo milésimo gol na Fonte Nova, em 1969. Além de ter impedido a ação do Rei, com ajuda do zagueiro Nildon Birro Doido que salvou uma bola na risca da linha, o volante ainda marcou naquele jogo, que terminaria empatado em 1 a 1. A palavra "resistência", escrita na parede da igreja (Foto: Júlia Sarmento) Mas, voltando à igreja, a prefeitura de Vera Cruz parece tê-la abandonado à própria sorte. A copa das árvores deram-lhe um teto espontâneo e os troncos sustentam as paredes ajuntadas por óleo de baleia. Ali está uma das igrejas mais antigas do país ainda de pé. E a terceira mais longeva da Bahia – perdendo apenas para a Igreja da Misericórdia (em Porto Seguro, de 1526) e a Igreja da Graça (no bairro da Graça, em Salvador, levantada em 1535 e onde está sepultada Catarina Paraguaçu).

A diferença é que, até por incompetência do poder público, a Igreja de Baiacu ainda conserva seu formato plenamente original, sem jamais ter passado por uma grande ação de reforma ou conservação. Atrás do prédio, há um cemitério que foi usado ainda no século XX para enterrar os nativos itaparicanos. Os jazigos mais antigos são da década de 1930. Árvores dão apoio às paredes da Igreja de Baiacu, de 1560 (Foto: Júlia Sarmento) O laureado escritor João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) narrou as peripécias do povo de Baiacu, tendo como referência a igreja, em sua obra-prima epopeica “Viva o Povo Brasileiro”, de 1984.

O avô do imortal da Academia Brasileira de Letras é Ubaldo Osório, aclamado como o maior historiador da ilha e autor do livro “A Ilha de Itaparica: História e Tradição”.

Hoje em dia, sem qualquer controle ou vigilância de um entreposto de turismo, é possível entrar na igreja a qualquer hora ou em qualquer dia. Nos cantos das paredes dá pra ver santos fincados por fiéis católicos e despachos elaborados pelo povo de santo.

O espaço é comumente usado por devotos das duas religiões. A grande curiosidade é que, no que pode ser interpretado como uma metáfora sincrética, as árvores que hoje são o alicerce da igreja são as gameleiras, consideradas sagradas pelo candomblé. Santos e despachos colocados nos cantos da igreja (Foto: Júlia Sarmento) Os galhos e raízes continuam em pleno crescimento, forçando as antigas estruturas numa ação que, em dado momento, devem colocá-las abaixo. Em uma das paredes, numa letra bem desenhada, alguém escreveu a palavra “resistência”.

O retrato do momento, por enquanto, é uma síntese da Bahia mística: o poder público esqueceu nossa história. A comunidade, que aprendeu por experiência própria a diferenciar o veneno do alimento, abraçou o legado. O candomblé e a igreja católica se misturam numa simbiose natural entre árvores e concreto, mantendo de pé a religiosidade.

E viva o povo brasileiro!  

[Esta crônica é dedicada a tio Carlucho, Carlos Augusto, que me apresentou a igreja de Baiacu e sua história em janeiro deste ano].