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Paulo Sales
Publicado em 29 de junho de 2020 às 05:00
- Atualizado há um ano
Na semana passada, a escritora Lya Luft declarou-se arrependida do seu voto em 2018. Eleitora de Jair Bolsonaro, ela disse que “queria outro Brasil e deu no que deu”. Então um mundo pareceu desabar sobre a autora de Perdas e Ganhos, livro que tenho aqui em casa e nunca li. Foram críticas ferozes sobre sua opção política e até mesmo sobre o fato de ter se arrependido. Como se a ela – uma mulher culta e bem-informada – não fosse dado o direito de errar. Bem, todos nós cometemos erros em certos momentos da vida.
Lya não é a primeira intelectual a apoiar causas deploráveis – e Bolsonaro é inequivocamente uma delas. A história da literatura, sobretudo na era dos extremos que foi o século 20, é farta em equívocos monumentais ou – ainda mais grave – em predileções que revelam o mais sombrio da alma humana. Penso em John Steinbeck, que apoiou a Guerra do Vietnã. Ou em Jean-Paul Sartre, que continuou louvando o regime stalinista da URSS mesmo após revelados os expurgos e os milhões de mortos nos gulags siberianos. Jorge Luis Borges tinha lá suas simpatias pela ditadura militar argentina, assim como Rachel de Queiroz e Nelson Rodrigues pela brasileira.
Mas nada se compara a Louis-Ferdinand Céline e Ezra Pound. Esses desceram ao mais baixo grau da ignomínia, ao tempo em que alcançavam o cume da excelência literária. Pound é autor de E Assim em Nínive, um dos mais belos poemas já criados pela espécie humana, além dos versos quase incompreensíveis de Os Cantos. Fascista e antissemita, o poeta norte-americano serviu de inspiração para um grupo de extrema-direita italiano criar a Casa Pound.
Já Céline concebeu nada menos que Viagem ao Fim da Noite, um dos mais virulentos e fascinantes petardos já desferidos sobre a estupidez humana. Tipo asqueroso, escreveu também panfletos ignominiosos pregando o extermínio dos judeus na Segunda Guerra. Seria um desses tipos facilmente esquecíveis, ou lembrados apenas por sua torpeza, caso não houvesse entrado para a história da literatura como o homem que “emporcalhou” o idioma de Proust e Flaubert com desvarios estéticos e palavras arrancadas do cotidiano da plebe.
Tudo isso traz à tona uma questão que considero crucial nas discussões sobre a relação entre arte, cultura e sociedade: um grande artista merece ser preservado, mesmo tendo sido um ser humano abjeto? Ou melhor: deve-se preservar a sua obra, ou até ela merece ser relegada ao oblívio? A arte justifica o mal? Claro que não, nada o justifica. Mas então, o que fazer? Queimar livros, discos, celulóides? Colocá-los num índex semelhante ao da Inquisição? Não precisamos disso. Tenho nojo de Céline, mas agradeço ao mundo por ter me dado a oportunidade de ler sua obra maior e admirá-la, mesmo sabendo que foi escrita por um canalha.
Voltando a Lya Luft, que inspirou toda essa divagação meio sem propósito, creio que devemos entender e até perdoar quem peca e se arrepende, num sentido bíblico mesmo. São erros motivados por estupidez, alienação, raiva, desinformação e, claro, preconceito de classe. Erros que foram cruciais para forjar a tragédia em que estamos mergulhados. Mas precisaremos muito desses arrependidos – e de um mínimo de união, lucidez e serenidade – para que ela tenha fim.