O protocolo das escolas é perfeito pra quem não gosta de infância

Naturalizar absurdos talvez seja uma morte da qual não vamos nos recuperar tão cedo

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 19 de junho de 2021 às 11:10

- Atualizado há um ano

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Nessa semana, a escola de meu filho fez uma reunião on-line pra apresentar os protocolos de retorno às aulas presenciais. É opcional para as famílias, claro, como manda a lei, e o colégio, até onde sei (e acredito), age dentro da legalidade. Na reunião, a coordenadora deixou bem claro que só vão abrir quando a prefeitura permitir e que vão colocar em prática o protocolo sanitário adequado ao segmento, amplamente discutido e que teve altos investimentos dos empresários bem sucedidos do setor.

Há famílias ansiosas pelo retorno e, a essa altura, com as pessoas informadas à exaustão, não me cabe mais questionar desejos e realidades individuais. Muito menos, repetir que não há protocolo que garanta segurança plena, uma vez que as próprias escolas sabem disso e dividem a responsabilidade de contaminações com os/as responsáveis, que devem assinar documentos, quando decidem enviar crianças às aulas presenciais. Isso também não é novidade. Ou seja, no que se refere à legalidade e esclarecimentos, está tudo muito que bem, obrigada.

(Cabe questionar a segurança de profissionais da educação - que ainda não completaram calendário de imunização - mas todo mundo tem sindicato e maioridade pra falar por si.)

Fato é que eu nunca havia conhecido, com detalhes, o tal "protocolo de biossegurança das escolas". Pela primeira vez, ele estava ali, diante de mim, como uma proposta de rotina para o meu filho. Mais uma mãe, entre tantas. Só mais uma escola, entre milhares. Uma situação corriqueira que se repete em todos os lugares do Brasil. Porém, pra mim, um marco de percepção do que a pandemia fez com a gente. Naturalizar absurdos talvez seja uma morte da qual não vamos nos recuperar tão cedo.

"Sentar na cadeira com seu nome, aguardar na sala de aula durante o momento de troca de professor, os alunos presenciais não podem conversar entre si no decorrer da aula, não circular na sala de aula, não compartilhar material de qualquer natureza, usar a garrafa individual identificada para água, realizar a primeira troca de máscara, os alunos permanecerão dentro da sala de aula salvo o dia designado para sua turma usar os espaços coletivos em rodízio". Isso, entre outros muitos procedimentos que normatizam, inclusive, as idas ao banheiro, durante um turno inteiro.

(Considerando protocolos de entrada e saída - com os ineficazes termômetros, evidentemente, envolvidos - e as ações que as famílias devem, em teoria, executar, alunos/as devem ficar, em média, seis horas, nesses dias, se comportando com o foco em não se infectar. Além disso, carregando a responsabilidade de uma eventual contaminação de familiares.)

No fim da explicação da escola de meu filho (uma sequência interminável de "nãos"), uma família perguntou "e se a criança não se adaptar?" "A criança que não se adaptar não poderá frequentar as aulas presenciais", foi a resposta. A única possível. O "não" definitivo. Finalmente. Ainda que necessário, para os que se arriscam, nesse momento eu só consegui pensar que o protocolo das escolas é perfeito pra quem não gosta de infância. Conter, calar, imobilizar e, por fim, excluir (por "incompetência da criança"). São esses os verbos, é essa a prática autorizada (e necessária, agora, veja bem!) em todas as escolas, que reabrirem, neste país.

("Super Nannys" devem estar em orgasmos, assim como as "adestradoras de bebês" e similares.)

É claro que, em muitas famílias, a situação, em casa, e tão desesperadora que, por comparação, essas escolas, mesmo assim, são perfeitamente digeríveis. Desejáveis até. Também há quem pense que essa nova rotina "disciplina" as crianças e que isso é positivo. Há, realmente, muitas formas de ver o mundo. Inclusive, há quem comemore o fato de que "as crianças cumprem protocolos mais facilmente do que os adultos". Eu, daqui, só desejo que ainda estejam vivas o suficiente para que descumpram, para que não consigam ser essa coisa que desejam que elas sejam. Porque isso não é criança.

Para um mínimo de segurança biológica nas escolas, os protocolos devem ser cumpridos à risca. Fato indiscutível. Para que crianças e adolescentes cumpram esses protocolos à risca, só dopando. De medo (do vírus, dos professores, dos castigos), de tristeza. Ou de uma dessas drogas lícitas que, mesmo antes da pandemia, já faziam sucesso nas famílias e entre "educadores" que se formaram para um troço com o qual não têm a menor paciência. Daqui, prevejo chuva de diagnósticos de TOD e TDAH pra quem tem 5, 6, 10 anos e só quer levantar da cadeira, fazer xixi quando tiver vontade, emprestar a borracha pro colega, conversar com um amigo, abraçar a professora e dar uma voltinha pra respirar. Serão desajustados os que insistirem em existir.

(Sexta passada, em Vitória (ES), um menino de 12 anos foi AMARRADO, na cadeira, na sala de aula. Isso, também, será naturalizado? É só uma questão de tempo?)

(Essas pessoas não são adultas, elas estão em formação, não têm maturidade sequer neurológica para uma rotina que cansa até profissionais treinados da área de saúde.)

É exigir demais e deformar. Eu não vou me adaptar. Espero que as crianças e adolescentes também não. A cereja no bolo da tristeza global seria ver, em cada um/a deles/as, um personagem saído do livro de Pedro Bandeira, A Droga da Obediência, que eu li lá pelos 11 anos e nunca me saiu da cabeça. Vê-las desobedecer, saber da inadaptação a regras antinaturais será, mais do que em qualquer outro tempo, sinônimo de vida, resistência e alguma esperança no futuro que virá. Apatia, obediência cega e submissão nunca foram características de humanos felizes e funcionais. Impor uma rotina que exige esses comportamentos, não é nem jamais será educar.

(Eu acredito é na rapaziada.)

(Betim, em MG, aqui mesmo do Brasil, começou a vacinar alunos e alunas, para a volta às aulas presenciais. Bato nessa tecla há meses, mas não há mobilização de famílias nem de educadores/as nesse sentido. Vale lembrar que prefeitos e prefeitas têm autonomia para decidir, INDEPENDENTE DO PNI. E que já há vacinas aprovadas para crianças e adolescentes. Não tem mais desculpa pra não fazer as coisas da forma correta. Só depende de pressão e cada um/a pressiona pelo que lhe interessa. Aqui, nada é mais importante, agora, do que VACINAR.)