O sol após a enchente de Itabuna

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  • Nelson Cadena

Publicado em 30 de dezembro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Quando as chuvas deram uma trégua e o Sol fez a tão desejada aparição pelos moradores de Itabuna, na catastrófica enchente de 1967, a Rua do Cinquentenário teve de ser interditada pelas autoridades. Cordas foram estendidas de lado a lado. Nelas, penduradas camisas, calças, casacos, roupas de cama, tudo novinho com etiqueta. Na calçada e no meio da rua, cadeiras, sofás, eletrodomésticos, móveis de cozinha, camas e armários dos comerciantes da área. Nos bairros ribeirinhos, as cordas improvisadas do lado de fora também apareceram, exibindo roupas íntimas e de rotina e, nas ruas cobertas de lama, uma, ou outra cobra perturbava os sofridos moradores, abalados com as perdas materiais.

“Doido Manso”, o vendedor de loterias da Rua do Cinquentenário, observava a cena e culpava os coronéis do Cacau pela fúria do Rio Cachoeira. Contava como os areeiros retiraram por anos do fundo do rio pás cheias de areia que conduzidas por jumentos eram levadas para os coronéis construírem os seus sobrados na cidade. Enquanto a arenga do “Doido Manso” provocava risadas dos transeuntes, os moradores da cidade corriam para a fila da vacina, depois que confirmados os primeiros casos de febre tifoide. A região contava com estoque de dois mil doses, menos do que as 40 mil que radioamadores alarmados solicitaram das autoridades estaduais e federais.

Na zona rural, o cadáver de uma mulher enrolada no arame farpado da fazenda de cacau e a descoberta de que o corpo fora conduzido pelas águas por vários quilômetros - ela moradora de Itapé - evidenciava a fúria do Rio Cachoeira. Os velhos pescadores, que tinham como referência uma árvore à beira do rio, que as águas das enchentes de 1914 e 1947, não conseguiram ultrapassar, custaram a acreditar no que viam quando o sol apareceu e a árvore emergiu do fundo das águas e, em toda a extensão da rua, folhagens e muita lama. E, quando as comunicações foram restabelecidas, souberam pelo rádio que as autoridades contavam mais de vinte mortos, a maioria afogados como a mulher do arame fardado.

O número de mortos que os locutores de rádio anunciavam nas suas resenhas noticiosas, e os pescadores tomaram como fiel informação, divergiam das contas dos jornais do sul, baseados em fontes “oficiais”. Contar mortos em zonas de miséria sempre foi uma dificuldade para as autoridades, alguns desses mortos sequer existiam vivos nos registros. O Diário de Notícias publicou 50 mortos, o Correio da Manhã 100, o Jornal do Brasil 200, a Tribuna da Imprensa e o Diário da Noite, dezenas. Os mortos ‘acordaram’ em Itapé. As águas cobriram o cemitério antes de arrastar os carneirinhos adestrados do Grand Wembley Circus, a casa do prefeito e a Câmara de Vereadores.

Se contar mortos pareceu tarefa do outro mundo, arrumar moradia para os vivos, mais de quinze mil desabrigados - algumas fontes estimaram em vinte e cinco mil -, foi um desafio que requereu solidariedade e empenho das autoridades. Até o Santo Papa, comovido, enviou a sua contribuição de dez mil dólares. Voluntários organizavam diariamente a fila da comida, da água potável, nas igrejas, escolas e barcaças das fazendas de Itabuna, Ilhéus, Itapé - que praticamente sumiu do mapa -, Ibicaraí, Floresta Azul, Potiranguá e Itapebi, os municípios mais afetados.

Não era a mesma fila das enchentes de 1965 e 1966, prenuncio da grande cheia de 1967, era várias vezes maior e uma fila triste; entre as famílias a expectativa de encontrar os desaparecidos que as estatísticas não conseguiam achar.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras