O terror que pode ser a única saída: entenda como acontece a intubação na covid-19

Mortalidade em pacientes intubados por coronavírus no Brasil chega a 80%, mas procedimento pode salvar pacientes

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  • Thais Borges

Publicado em 27 de março de 2021 às 06:58

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Shutterstock

O paciente com falta de ar grave, inflamação generalizada nos pulmões, nível de saturação do oxigênio lá embaixo. Falência respiratória mesmo. Não tem jeito, vai ter que intubar, dizem os doutores. Por telefone, conversa com a família, avisa que os ama pela chamada de vídeo e que logo vai voltar para casa. Mas chegou a hora. Quando desliga, pede ao médico que, por favor, não o deixe morrer. 

Ainda que com algumas variações, essa cena se repete todos os dias, em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) pelo estado. Com a alta dos casos de covid-19 pela segunda onda da pandemia, a frequência com que ela acontece também aumentou. Para alguns pacientes com quadros graves da doença, a intubação se tornou um dos maiores medos. 

Leia também:Relato: 'Passei 8 dias intubado na UTI. Foi muito doloroso, tive pesadelos e não sabia se estava vivo ou morto'Relato: 'A intubação mexe com seu corpo todo. O tempo que passei na UTI foi como se eu não existisse' De fato, os números podem assustar. Entre os pacientes que foram intubados por coronavírus no Brasil, entre fevereiro e agosto de 2020, 80% morreram, de acordo com um estudo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) divulgado este mês. O percentual pode assustar, mas é mais alarmante se for comparado a outros países: a média mundial fica em torno de 50%.“Tem muitos pacientes que chegam e já falam que não querem ser intubados, até por conta desse medo de que quem é intubado morreria mais. Mas a intubação em si é para tentar fazer com que aquele pulmão repouse e se recupere”, diz a fisioterapeuta intensivista Diana Taila, que atua na UTI covid-19 de um hospital privado de Salvador. “A intubação não é a vilã da mortalidade”, enfatiza. No Nordeste, a mortalidade fica acima da média nacional - chega a 83,7%. Na ocasião, a mesma pesquisa não divulgou dados por estado. A Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) foi procurada pela reportagem, mas não informou se tinha estatísticas da Bahia. 

Mesmo assim, o número de pessoas intubadas por covid-19 ajuda a dar uma dimensão do universo: na última quinta-feira (25), dos 504 pacientes em leitos de UTI do SUS apenas em Salvador, 259 - portanto, 51% - estavam em ventilação mecânica. 

No entanto, a intubação é a única saída em alguns casos. E é preciso agir rápido, com uma ação coordenada, como explica a médica intensivista Alessandra Athayde, que atua em UTIs covid de unidades públicas e privadas. “Para nós, também é um momento de muito estresse. A gente não sabe o que vai encontrar pela frente na hora de intubar, se é uma via aérea fácil ou não. Você só tem 20, 30 segundos para intubar o paciente porque, a partir daí, já tem algum sofrimento”, alerta. 

Quem precisa  Não é todo mundo que vai precisar ser intubado por complicações da covid. Essa é a indicação para aqueles que têm insuficiência respiratória aguda. Ou seja, quem tenta buscar o oxigênio no ar e não consegue, ficando com uma frequência respiratória muito acelerada - é o que os profissionais de saúde chamam de taquipneia. "Isso acaba num limite do que ele consegue captar do oxigênio do ar. O paciente começa a fazer um esforço muito grande para tentar colocar mais oxigênio para dentro dos pulmões. É necessário que você faça ele respirar de outra forma", diz o médico intensivista Joel Passos, presidente da Regional do Rio de Janeiro da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib). A intubação, portanto, tem o objetivo de preservar as vias aéreas e a respiração. Uma vez intubado, quem fará o trabalho da respiração é o respirador, como explica o médico anestesiologista José Admirço Lima Filho, doutor em Anestesiologia. "A intubação é a conexão entre o paciente e a máquina, que vai fazer esse trabalho de respiração", diz. 

Até concluir que o paciente precisa da intubação, a equipe médica faz exames, incluindo uma tomografia e uma gasometria. A tomografia indica, por exemplo, o quanto os pulmões da pessoa estão comprometidos. A gasometria, por outro lado, mostra quais são os níveis de gases no sangue - e o oxigênio ganha atenção especial. 

"Quando a pessoa tem mais de 50% de comprometimento dos pulmões, é um paciente que tem potencial risco de evoluir para uma forma grave", explica a médica intensivista Alessandra Athayde. 

Outro sinal é quando a saturação do oxigênio fica abaixo de 90 - o ideal, em condições normais, é que fique acima de 95. Por fim, é mais provável que sejam intubados os pacientes que não mais respondem às terapias não invasivas."A gente orienta que o paciente fique de barriga para baixo, que é o que chamamos de pronação. Depois, a gente pula para outra fase, que é o uso de máscara não reinalante, que oferece de 80% a 100% de oxigênio. A partir daí, se o paciente persiste com essas alterações ou dá outros sinais, como a sonolência, pode ser uma hipoxemia grave. Esse é um candidato forte à intubação", completa. A hipoxemia é justamente o baixo nível de oxigênio no sangue. O processo A intubação orotraqueal - o nome completo dela - é feita quando um médico introduz um tubo que vai da boca da pessoa à traqueia. Esse tubo, que garante uma via aberta para passagem de ar até os pulmões, é conectado ao ventilador mecânico, que vai respirar pela pessoa internada. 

Ainda que seja muito temida, a intubação é um dos procedimentos mais antigos da Medicina. Pesquisadores da área de anestesiologia apontam que as primeiras referências a ela vieram ainda em 1543, quando o médico Andreas Vesalius, considerado pai da anatomia moderna, intubou uma porca por meio de uma traqueostomia. 

Em 1667, o cientista Robert Hooke repetiu a experiência com um cachorro. Depois, cientistas tiveram experiências com pessoas. Mas foi só no século 19, já com a existência da anestesia, que começaram as primeiras experiências de intubação em pessoas pela boca. Ao longo do século 20, especialmente depois da Primeira Guerra Mundial, que obrigou médicos a desenvolver mais estratégias para cirurgias de trauma, a técnica foi se desenvolvendo cada vez mais. 

Hoje, para que o médico consiga introduzir esse tubo, é preciso seguir alguns passos, que incluem desde a paramentação da equipe até a posição em que o paciente deve estar. Mas um dos principais pontos é administrar uma combinação de remédios. 

Os medicamentos do chamado ‘kit intubação’ ganharam manchetes nacionais nas últimas semanas justamente por um prognóstico ruim: a possibilidade de escassez em UTIs de todo o Brasil. De todos os estados, vieram notícias de que os estoques acabariam em dias. Na última quarta-feira (24), porém, o Ministério da Saúde anunciou que firmou parceria com três farmacêuticas para a distribuição dos medicamentos. 

Na última semana, o Ministério Público Federal anunciou que está investigando a denúncia de que o órgão cancelou intencionalmente a compra de remédios do kit em agosto do ano passado. 

O primeiro medicamento é um sedativo, seguido de um analgésico e de um neurobloqueador muscular, que vai fazer com que os músculos fiquem ‘moles’. Sem essa combinação, o procedimento fica inviável porque é preciso ter paralisação do sistema muscular. "Uma vez com essas três drogas, você consegue introduzir o tubo com o ventilador e mantém o paciente sedado ou anestesiado. Como eles demoram 10, 12 dias, em média, nesse sistema, precisam dessas drogas durante todo esse período", afirma o médico intensivista Joel Passos, da Amib. Ou seja: depois de uma "dose de ataque", nos momentos iniciais, é preciso fazer a chamada infusão contínua de todas as drogas. Só que elas de fato merecem atenção por serem perigosas, já que podem fazer o coração parar. 

O tubo, por sua vez, deve ser colocado em um local extremamente preciso - é um espaço bem pequeno que leva à traqueia. "Você usa um aparelho laringoscópio, que é um instrumento metálico para visualizar as estruturas. É uma lâmina que coloca na boca do paciente para introduzir o tubo na traqueia e não no esôfago. Mas se até o swab (os cotonetes usados no teste RT-PCR) incomoda, imagine isso. Por isso, a gente usa as medicações", explica o anestesiologista José Admirço Lima Filho. 

Apesar da iminente crise de desabastecimento no país, o anestesiologista afirma que os custos da intubação são relativamente baixos. Um tubo orotraqueal custa aproximadamente R$ 15 - o mesmo valor dos medicamentos para um paciente que pesa 70 quilos. Assim, o processo da intubação em si sai por cerca de R$ 30. A ventilação mecânica, por outro lado, tem custos mais elavados. Assim, a diária numa UTI fica em torno de R$ 1.250. "O que é mais caro no hospital é a mão de obra, que é quase 60% do valor de um paciente com terapia intensiva", completa. 

Mortalidade  Mas o que justificaria os índices de morte maiores no Brasil? Os pesquisadores acreditam, inclusive, que o percentual deve aumentar quando forem considerados os óbitos de 2021, que têm crescido vertiginosamente no país. 

Há algumas explicações para esse cenário. Para o anestesiologista José Admirço Lima Filho, a mortalidade em uma UTI vai depender diretamente da gestão dessa unidade, assim como dos protocolos usados pelos profissionais que trabalham nela. 

Com a covid-19, ele não vê gestão uniformizada. Ainda que a Amib tenha normas, cada hospital acaba fazendo suas próprias diretrizes."Não existe nenhuma medicação, nenhum choro milagroso contra a covid. Mas a gente percebe que os protocolos voltados ao atendimento precoce têm os melhores resultados quando a gente vai para a Europa e para os Estados Unidos", lista. O atendimento precoce tem a ver com tomar decisões médicas com mais agilidade, mas também com os pacientes buscarem mais cedo as unidades de saúde. É uma avaliação comum entre os profissionais de saúde que eles têm chegado mais tarde no hospital. Muitos já dão entrada com fibrose pulmonar - quando há lesões e cicatrizes nos pulmões.

Além disso, segundo a fisioterapeuta intensivista Diana Taila, um aspecto que era comum no início da pandemia voltou a acontecer com muita frequência nos últimos meses: os pacientes que já chegam tomando medicações sem comprovação científica de forma contínua, acreditando que estão se protegendo da covid-19. No entanto, além de não prevenir o coronavírus, esses remédios têm piorado o quadro de saúde. “Eles acabam só agregando uma nova disfunção renal ou hepática e isso complica bastante. Muitos evoluem para hemodiálise. Há um ano, isso acontecia muito e diminuiu depois de um tempo. Agora, novamente, temos visto muito”, reforça. Ter tudo funcionando como deveria - inclusive ter a equipe adequada, com profissionais treinados nesses procedimentos - é a forma apontada pelo presidente da regional da Amib no Rio de Janeiro, Joel Passos, para reduzir as mortes. 

“Se você tem uma equipe adequada, se tem os equipamentos necessários, você consegue uma performance melhor de atendimentos e resultados. Agora, se você está superlotado, com um número de pacientes maior do que a equipe, os equipamentos não dão conta, começa a afetar a mortalidade, que é alta”, analisa. 

Profissionais  Apenas médicos podem fazer a intubação em si. Mas, mesmo entre os médicos, há profissionais que têm mais destreza do que outros. Alguns já têm mais experiência pela própria especialidade, como os anestesiologistas e os intensivistas. Em muitos casos, porém, há profissionais inexperientes. 

Em meio à pandemia, com tantos recém-formados trabalhando na linha de frente, não é surpresa encontrar alguém que nunca tenha feito o procedimento - ou que, no mínimo, tenha tentado pouquíssimas vezes. 

Essa é uma das preocupações do enfermeiro intensivista Albert Oliveira, que trabalha em UTI de covid e é conselheiro do Conselho Regional de Enfermagem da Bahia (Coren).“Como sou professor universitário, vejo que às vezes o profissional não tem práticas ou elas não são suficientes. Ele sai da graduação e acaba indo direto atender em UPAs (Unidades de Pronto Atendimento). Nesse cenário de pandemia, são muitos profissionais recém-formados com dificuldades em diversos procedimentos e a intubação é um deles”, diz o enfermeiro, que defende que os profissionais mais inexperientes sejam acompanhados por supervisores. Isso é importante até mesmo para evitar uma intubação desnecessária - algo que aconteceu, inclusive, em um de seus últimos plantões. Todo o processo de intubação, reforça Albert, precisa ser discutido com a equipe. Assim, passa a ser uma decisão não apenas do médico, mas de todos, já que também considera as recomendações da enfermagem e da fisioterapia. 

“Ainda existem profissionais muito individualistas, que não têm uma visão multiprofissional. Isso dificulta muito a terapia. O paciente precisa ter pressão estável, batimentos cardíacos estáveis. Quando você expõe a um ato desnecessário, pode entrar em choque e até levar à morte”, diz. 

A médica intensivista Alessandra Athayde acredita que as intubações desnecessárias são raras. No entanto, ela reconhece que, na atual conjuntura, profissionais sem muita experiência acabam sendo colocados em campo porque já não há tantos profissionais especializados disponíveis. “Na verdade, a intubação é o terror. A ventilação mecânica é o terror de todo mundo, do familiar, do paciente e da gente também, porque, a depender da experiência de cada um, ela pode ser mais ou menos difícil. Mesmo com experiência, tem intubações que não são fáceis”, enfatiza. Até o fim  Ao longo de cada dia da intubação, o paciente é monitorado. A fisioterapia, por exemplo, continua com a técnica da pronação - que é deitar o paciente de bruços, para favorecer a ventilação. Eles chegam a passar 20 horas seguidas nessa posição, com intervalos de descanso de seis horas. 

“A gente já usava isso na UTI, mas era uma técnica muito rara. Hoje, fazemos três, quatro, cinco vezes, em um plantão de 12 horas”, conta a fisioterapeuta Diana Taila.

A intubação não deve passar de 15 dias - e é esse máximo que tem sido tolerado na covid-19. Se passar desse período e o paciente não tiver se recuperado, é preciso partir para a traqueostomia - orifício feito, em cirurgia, no pescoço, para acessar a traqueia. Essa, sim, não tem limite e pode durar até quanto tempo o paciente precisar. 

Mas mesmo quando fica tudo bem, o processo de reabilitação não acaba aí. A maioria dos pacientes precisa de acompanhamento de especialistas, como fisioterapeutas e nutricionistas. Em muitos casos, precisam reaprender a andar, comer e até a respirar sozinhos. “Todos saem com perda de peso, porque os músculos ficam parados. Por isso, a fisioterapia é importante”, completa o anestesiologista José Admirço Lima Filho.

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