O trânsito dos sonhos à beira mar

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  • Kátia Borges

Publicado em 17 de abril de 2022 às 06:24

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Após dois anos de isolamento, a primeira viagem por aplicativo. Percurso curto, de casa ao trabalho. Me surpreendo ao ver aparecer na tela um nome de mulher. No passeio irregular de pedras, em frente ao prédio, acompanho no celular o trajeto do carro minúsculo sobre as linhas do mapa da cidade até o ponto de partida.

O modelo pedido é do tipo mais confortável. Ao fazer a manobra na rua onde moro, no entanto, noto que o veículo não parece se adequar aos padrões da categoria. É do tipo popular, com um machucado visível na parte dianteira, e faz um barulho danado ao se movimentar em minha direção. Tanto faz, penso, a vida anda duríssima.

A motorista tem nome de flor e me recebe com uma simpatia irresistível. Digo que desejo seguir pela orla, driblando as infinitas obras no caminho indicado no Google Maps. Ela sorri e concorda, mas erra a curva na rotatória. Argumento que podemos manter aquele curso então, tudo bem, chegaremos lá de todo modo.

Mesmo assim ela corrige o rumo e, logo, o mar azul da Baía aparece diante de nós no fim da esquina. Enquanto o automóvel avança, em meio ao engarrafamento leve da manhã de abril, engatamos uma conversa sobre as nossas vidas. Descubro que minha condutora tem quase 70 anos e dois filhos já crescidos.

Escuto com atenção enquanto ela conta que trabalha desde sempre em empresas privadas, aposentou-se e seguiu na lida, dirigindo o dia todo pelas ruas da cidade para complementar a renda. Destemida, só não encara rodar durante a noite por conta das limitações da visão, hoje um pouco reduzida. Coisas da idade, brinca.

Uma menina observa de dentro de mim a paisagem, turista eterna diante da beleza da cidade. Somos assim, duas mulheres que não se rendem. Ao volante, com nome de flor, ela conta que pretende um dia descansar, talvez viver perto do mar, encontrar outra atividade. Um jardim onde plantar, quem sabe, outros modos de existência.

Ao chegarmos ao final da viagem, não me seguro e entrego a admiração cultivada em poucos minutos, silenciando a revolta por tudo ser desse jeito, e romantizarmos os incansáveis, aqueles que resistem, transportando pedras quando deveriam estar plantando flores distraidamente. Ela agradece e sorri.

Na minha cabeça, durante a manhã inteira, penso um poema irônico de Paulo Leminski sobre alcançar os 70 anos. “(...) então ver tudo em sã consciência quando acabar esta adolescência”. Os planos adiados para as chamadas coisas sérias da vida, saudavelmente localizados em algum ponto distante do sinuoso percurso.