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Paulo Sales
Publicado em 30 de novembro de 2020 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Foi-se Dom Diego. Tão novo, mas já tão desgastado pelos excessos, vergado por essa aventura insana a que chamamos vida. Foi com ele uma parte da minha infância e adolescência que guardo com o afeto dos inocentes. A sua morte, aos 60 anos, revela um fato inapelável: nós, que aprendemos a idolatrar o território celestial dos gramados quando deuses como ele o habitavam, nos tornamos uns velhos saudosos. Junto com Zico, Maradona inculcou em mim uma devoção quase sagrada por essa grande arte chamada futebol. Um com a camisa do Flamengo, outro, com a da seleção argentina, pela qual continuo torcendo meio sem saber por quê.>
Nunca fui bom de bola, mas adorava jogar nos campinhos de barro, grama ou areia então disponíveis no condomínio onde passava as férias com a família e os amigos. Nessa aurora hoje empalidecida, falávamos com entusiasmo dos lances de Maradona e do que ele fez de mágico e de impossível naquela Copa de 1986. Seu gol contra a Inglaterra, após destroçar sozinho meio time adversário, é sua obra máxima, concebida em apenas 10 segundos. É o seu Milagre Secreto, o seu Adiós, Nonino. Porque, afinal, Maradona tem a estatura de um gênio, ombreando-se aos seus conterrâneos Jorge Luis Borges e Astor Piazzolla.>
O jornalista Alberto Amato, do diário argentino Clarín, resume com brilhantismo quem foi Dom Diego: “Maradona não tinha os 33 anos de Eva Perón ou os 45 de Carlos Gardel, mas compartilhou com eles a fogueira, a imolação, a oferenda. O menino humilde que chega tão longe exerce fascínio, traz em si uma certa autoridade moral que muitas vezes não tem, mas isto licencia autoconfiança, rebelião, fúria e ternura, tudo junto. (...) Construiu seu próprio Calvário, pregou os pregos na cruz na crença de que tudo lhe seria perdoado. Até que seu corpo se partiu como um galho frágil.”>
Ainda gosto de futebol. Ainda sou apaixonado pelo Flamengo. E devo essa paixão incondicional aos anos em que assistia às pelejas com meu pai, flamenguista devoto e amante do jogo bem jogado. É um fascínio estranho, por vezes irracional. Permanecemos ali, cercados por milhares de desconhecidos num estádio ou solitários em frente a uma tela de tevê, esperando que a trama se consuma, que os atos se desenrolem como drama, farsa ou uma grande tragédia.>
É uma veneração que se aproxima da loucura. No velório de Maradona, uma multidão de amantes desolados cercou a Casa Rosada, que acabou invadida. Não dá para esperar ordem quando quem se despede é um deus do caos, do improviso, da imprevisibilidade.>
Foi-se Dom Diego. Longe do apogeu, de quando o mundo se punha aos seus pés, dos tempos em que dançava com a bola colada à chuteira esquerda, obediente como uma amante irremediavelmente apaixonada. Um homem de esquerda, com Che Guevara tatuado no braço e Fidel Castro na perna, que fez milhões de garotos, como eu, se viciarem nesse ópio do povo tão sem sentido, mas tão arrebatador. Fique em paz, maestro. E obrigado por tudo.>