Onde a civilização não tem vez

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  • Paulo Sales

Publicado em 3 de maio de 2021 às 08:49

- Atualizado há um ano

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Meridiano de Sangue é o primeiro livro que leio de Cormac McCarthy. Há nele pouco apreço pela vida humana. Confrontados com situações extremas, homens se comportam como feras: matam-se aos montes, desprezam a piedade, enxergam no outro um inimigo potencial. E há o agravante da crueldade: não apenas matar, mas infligir sofrimento. Estamos no Oeste sem lei e de fronteiras fugidias, tantas vezes retratado no cinema de um Ford ou um Peckinpah.

O universo que McCarthy recria é habitado por gente opaca. Homens, mulheres e crianças de areia, que se confundem com a paisagem desértica. Não almejam nada além da sobrevivência diária. Não existe conhecimento ou diversão, apenas instinto e bestialidade. Há algo do Conrad de O Coração das Trevas, a imersão no inferno no âmago da África, o Congo selvagem que no cinema foi transportado por Coppola para o Vietnã em guerra. O horror, o horror.

Livros do próprio McCarthy também ganharam as telas, e com uma força tremenda. Tanto em Onde os Fracos Não Têm Vez, dos irmãos Coen, quanto em A Estrada, de John Hillcoat, o que se vê é o homem comum tentando sobreviver a uma violência estarrecedora, que arrasta tudo como um tufão. O homem é um bicho mau, já disse William Burroughs, e McCarthy parece concordar com ele. Sobretudo quando despido dos traços civilizacionais que construiu ao longo dos milênios.

No filme dos Coen, o Texas profundo é um território dominado pela barbárie, personificada pelo amoral Anton Chigurh de Javier Bardem. Seu contraponto é o xerife Tom Bell, vivido por Tommy Lee Jones. Bell é um homem velho e com formação humanista, e fica claro que ele não é páreo para o que se desenrola à sua frente: um mundo onde se mata e se morre como se reproduzisse, em escala ampliada, um ninho de ratos sem comida. Sua perplexidade é a de quem vê uma sociedade em decomposição.

O personagem de Jones representa a reserva moral, o mundo civilizado, os frágeis valores éticos constantemente ameaçados pela brutalidade. Assim como o pai sem nome de Viggo Mortensen em A Estrada, que peregrina junto com o filho num cenário pós-apocalíptico em busca de um lugar seguro. Em Meridiano de Sangue não existe sequer essa reserva moral. O garoto anônimo que guia a narrativa não é dotado de princípios, pudores ou escrúpulos. Apenas persiste, dia após dia, sem aspirações ou ambições. Como um bicho.

Transpondo para a vida real, é curioso que, por mais que batalhemos como insanos para desfrutar das benesses da prosperidade, essa não foi a regra no longo percurso da humanidade. Viajar nas férias, edificar uma biblioteca, beber um vinho com a namorada ou contemplar um quadro num museu, nada disso esteve presente no cotidiano da maioria dos nossos antepassados mais remotos. O prazer epicurista não era cultivado, salvo raríssimas exceções de uma elite culta. Como hoje.

Vivia-se em meio a rebanhos, depois em fábricas imundas e, por fim, vive-se com uma mochila às costas transportando comida alheia. Vivia-se e ainda se vive em meio a surtos de violência extrema. A despeito da ida do homem à lua ou da fartura de alimento para prover todos os habitantes do planeta, não traduzimos suficientemente os nossos avanços em bem-estar coletivo. Basta olhar nas ruas famílias pedindo dinheiro com cartazes nas mãos, ou ler sobre crianças mortas por balas perdidas, para nos darmos conta de que até aqui fracassamos. Talvez seja isso que Cormac McCarthy queira nos dizer com seus livros.