Onze brasileiros são resgatados de cruzeiro e estão livres de trabalho escravo

Prisioneiros afirmaram que alimentação costumava ser com vegetais não lavados e carnes sem cozimento, levando alguns a roubarem a comida destinada aos passageiros

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  • Alexandro Mota

Publicado em 5 de abril de 2014 às 10:09

- Atualizado há um ano

Condições de trabalho degradantes e jornadas excessivas. Esse poderia ser cenário distante na história do Brasil, não fosse uma operação que confirmou a existência de atividades análogas à escravidão em um cruzeiro da companhia italiana MSC Crociere. Na terça-feira, quando a embarcação Magnifica passou pelo Porto de Salvador, 11 brasileiros foram resgatados após três semanas de investigação.     “Estou ainda em dúvida se estamos falando de um navio de turismo de luxo ou um navio negreiro”, comentou Átila Dias, chefe da Defensoria Pública da União na Bahia, que integrou a força-tarefa da operação, junto com Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência e Polícia Federal. “São todas ofensas gravíssimas aos Direitos Humanos, independentemente da legislação que seja discutida”, diz Alexandre Lyra, auditor do MTE.Fotos: Rogério Paiva/DivulgaçãoPara os órgãos, o relato do dia a dia de trabalho do cearense Anderson Matsura, 33 anos, um dos resgatados, é uma clara demonstração do desrespeitos aos acordos internacionais que regem os contratos de trabalho da tripulação de cerca de mil trabalhadores (400 brasileiros).“Geralmente, trabalhava das 7h às 13h30, depois de 18h30 às 22h30. E os homens geralmente voltavam a trabalhar  de 23h30  até depois das 3h, mas o que tinham prometido era uma jornada de 11 horas. E éramos coagidos a assinar documentos com jornadas diferentes”, relata Anderson.No navio, ele perdeu 14 quilos em três meses. “Nem sempre dava para comer”, conta o assistente de garçom, que relata desvio de função com trabalhos de limpeza não remunerados nos horários que deveriam ser de descanso.O contrato firmado entre a MSC e seus trabalhadores é feito com base num acordo internacional que prevê uma jornada diária de até 11 horas, com dois descansos, sendo que um deles deve ser de pelo menos seis horas. Os trabalhadores resgatados estavam embarcados desde dezembro.Apesar de ser padrão a preservação de vítimas nesse tipo de operação, os próprios tripulantes resgatados se mobilizaram para falar com a imprensa. A apresentação da operação aconteceu ontem, na sede do MTE, na Piedade. Tripulantes chegavam a trabalhar 20 horas por dias e reclamam até do acesso à comida no cruzeiro que saiu de Santos, passou por Salvador e Recife e seguiu para o MediterrâneoNem água Natural de Salvador, o técnico de qualidade Eduardo Sobral, 29, viu o trabalho em navios como uma forma de juntar dinheiro. Embarcou com a esposa, a auxiliar administrativa Vânia Nunes, 28, com um contrato de nove meses. Eles relatam que as agências de recrutamento listam vantagens, mas não citam garantias trabalhistas.“Até água mineral a gente é obrigado a comprar e só querem que comprem dentro do navio. A água oferecida lá é dessalinizada, que, com o tempo, deixa a gente com a boca cortada, cabelo e pele ressecados”, conta Eduardo. “Eu me endividei. Foram mais de R$ 2 mil gastos em cursos que eles dizem que são obrigatórios”, diz Vânia, lembrando que casos de assédio sexual eram frequentes. Os trabalhadores resgatados contam ainda que o assédio moral exercido pelos chefes da tripulação se agravou  depois que um dos chefes foi desligado do cruzeiro após denúncias de racismo e homofobia.O assistente de garçom Elienai Vigon, 23, também foi vítima de tratamento ríspido. “Ligavam no quarto e diziam: ‘veste a farda’. Eu dizia que já tinha limpado. ‘Refaça que eu não vi’, ouvia. E tinha advertência. Com três, você era demitido por justa causa”. “Prometeram uma vaga de trabalho, não um pagamento de pena”, diz a pernambucana Kassandra Benevides, 31, que chegou a ver o esposo desmaiar depois de mais de 12 horas carregando peso. Para isso, cada trabalhador recebia, em média US$ 1 mil por mês, entre salário fixo e gorjetas. Eles também relatam que a alimentação costumava ser com vegetais não lavados e carnes sem cozimento, levando alguns a roubarem a comida destinada aos passageiros. Os tripulantes resgatados são do Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, São Paulo e Bahia. Questionários aplicados no Porto de Santos, há três semanas, e interrogatórios no Porto de Salvador, fizeram com que a força-tarefa encontrasse os brasileiros em situação de escravidão. “Nem todos tinham as mesmas condições. Quem trabalhava no shopping, por exemplo, não tinha situações de violação como as apresentadas por estes 11”, conta o auditor do MTE, Raul Brasil. Depois de Salvador, o cruzeiro passou por Recife e seguiu para o Mar Mediterrâneo.“Eles nem respeitam o acordo com sindicatos internacionais nem legislação alguma. Os trabalhadores estavam à deriva de proteção jurídica”, diz Rafael Garcia, coordenador de combate ao trabalho escravo do MPT da Bahia.As investigações começaram após denúncia de parentes e de tripulantes à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Os 11 resgatados retornaram, ontem, para suas cidades e a Defensoria Pública da União prepara ações individuais pedindo indenização. Resposta Em nota, a MSC afirma que “está em total conformidade com as normas de trabalho nacionais e internacionais e está pronta para colaborar com as autoridades competentes. Sendo assim, a MSC repudia as alegações feitas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, do qual não recebeu nenhuma prova ou qualquer auto de infração”. Além disso, a empresa enfatiza que dois dos tripulantes apontados pela operação em situações adversas prefeririam permanecer no navio.Estude seus direitos antes de embarcar para trabalhar num navioO Conselho Nacional de Imigração (CNIg) criou, em 2006, uma resolução que ajuda brasileiros a conhecerem seus direitos trabalhistas, mesmo que esses acordos de trabalho não sejam regulados pela legislação local (desde que seja contrato superior a cinco meses).

Por lei, 25% da tripulação de embarcações que fiquem mais de 30 dias em águas brasileiras deve contar com 25% da tripulação de nativos. Entre as regras, os brasileiros têm que ter as mesmas condições de trabalho e remuneração dos demais tripulantes na mesma função, não podem ter descontos em folha de custos com uniformes e objetos de trabalho, nem ser cobrados por entrevistas, palestras ou deslocamento até o local de embarque, além de ter jornada de trabalho compatível com o contrato firmado.

O Direito Marítimo Internacional estabelece que trabalhos em navios devem ser regulamentados pela legislação do “país de bandeira” da embarcação, o que não  desobriga o cumprimento das Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Desde 2012 é constante a fiscalização da situação de trabalho em navios em águas brasileiras. Após a operação, finalizada esta semana em Salvador, e com o fim da temporada de cruzeiros este ano no Brasil, as equipes federais já se organizam para ampliar a operação do próximo ano. O auditor do MTE Alexandre Lyra diz que, além da fiscalização nas embarcações, o principal alvo das ações será, de agora em diante, as agências que recrutam os trabalhadores para a atividade, que são responsáveis por informar os brasileiros sobre seus direitos.  

Por conta do descumprimento desses critérios, a MSC Cruzeiros, que nega caracterização de trabalho análogo a de escravo, deve ser obrigada a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Caso não aceite, o objetivo do Ministério Público do Trabalho é abrir um processo para obrigar a empresa a fazer adequações do contrato pelas normas brasileiras.