Os primeiros soteropolitanos: índios Tupi habitavam aldeias onde hoje ficam bairros como Barra, Graça e Pirajá

Urna de sepultura pré-colonial foi encontrada na Avenida Sete no ano passado

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  • Roberto Midlej

Publicado em 29 de março de 2021 às 17:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: foto de Arisson Marinho

Em abril do ano passado, foi encontrada em Salvador, nas imediações do Relógio de São Pedro, pela primeira vez na história da capital, uma urna de sepultura pré-colonial, peça arqueológica de enorme valor histórico. Dentro dela, estavam os ossos de um índio tupinambá que, estima-se, viveu na cidade entre os séculos XIV e XVI. Os tupinambás viviam no litoral e eram falantes da língua tupi. Por isso, como todos os outros indígenas que falavam essa língua, eram considerados tupis.    A descoberta pioneira aconteceu durante as obras de requalificação da Avenida Sete e revela um pouco mais da história dos tupis. Junto com a urna, havia fragmentos de cerâmica que, mais tarde, foram identificados como assadores. Estavam sobre a ossada e funcionavam como uma tampa.

"Um outro ponto importante dessa amostra é o fato de encontrar-se bem preservada, constituindo dois vasilhames inteiros, possibilitando assim, enriquecer o conhecimento técnico sobre o modo de produção da cerâmica tupi. Chama a atenção o padrão decorativo referente às pinturas, traços precisos e repetitivos, formando um acabamento perfeito", diz Cláudio César S. e Silva, arqueólogo coordenador do projeto de pesquisa científica apresentado ao Iphan e que encontrou a peça.

Segundo Cláudio, há uma vasta documentação bibliográfica sobre a presença de índios da tradição tupi no território brasileiro e, em particular na Bahia, inclusive em Salvador. "Alguns documentos são categóricos sobre a existência de grupos indígenas na região da atual avenida Sete de Setembro durante o período do contato com os europeus", afirma o arqueólogo.

Naquela área, de acordo com a documentação registrada, havia duas aldeias: a aldeia do Simão ou Tubarão, localizada entre o Forte de São Pedro, o Jardim do Passeio Público e a Gamboa; e a de São Sebastião ou de Tubarão, nas proximidades da aldeia de Simão. Ambas foram duramente atingidas pelas epidemias de sarampo e catapora, tendo morrido a maioria de sua população e uma parcela fugido para o interior da capitania.

A pesquisa coordenada por Cláudio revelou, graças à descoberta da urna em Salvador, resultados inéditos sobre as características de um modelo sepultamento dos tupis. No livro Veredas Patrimoniais, lançado pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, há um capítulo dedicado exclusivamente àquele achado.

"Neste artigo cientifico, são apresentados dados minuciosos e característicos deste modelo de sepultamento dos tupis, revelando que os ossos foram colocados intencionalmente sobre um 'colchão' de blocos e seixos rochosos e coberto com dois vasilhames cerâmicos, totalmente decorados com pinturas padronizadas na parte interna e parcial na parte externa", observa o pesquisador. Isso confirma estudos anteriores, que já revelavam padrões de enterramentos que envolviam rituais complexos para os grupos tupis.

Cláudio acrescenta que a cerâmica é um dos elementos que é utilizado pela arqueologia para definir as tradições. No caso dos tupis, as cerâmicas são clássicas, principalmente pela técnica observada na decoração pintada. A urna encontrada na Avenida Sete atesta também que os tupis possuíam uma crença muito forte em relação aos mortos e havia um cuidado especial com alguns dos seus pares.

ONDE E COMO VIVIAM OS TUPIS E como viviam os tupis em Salvador? Os registros pré-coloniais não são precisos e não permitem conclusões seguras. Mas é certo que os indígenas  já habitavam as áreas correspondentes à capital baiana e ao que hoje se chama de Região Metropolitana de Salvador. O achado arqueológico é mais uma prova disso.

Após a chegada dos portugueses, "o mundo desses povos foi virado de ponta-cabeça", como afirma a professora Maria Hilda Baqueiro Paraíso no artigo Aldeamentos de Salvador no Século XVI. Maria Hilda tem doutorado em história social pela Universidade de São Paulo - USP e pesquisadora da história indígena.

Mas antes mesmo que os portugueses aportassem em terra soteropolitanas, os tupis mantinham relações amigáveis com franceses, com quem comercializavam o pau-brasil. "Um desses grupos vivia num aldeamento com vários europeus. Era a aldeia de Caramuru, que ocupava uma área que tinha como limites o Bairro da Graça, as praias de Ondina e o Morro onde fica Santo Antônio da Barra", observa Maria Helena.

Principalmente com os franceses, os tupis mantinham um relação de escambo, que era a troca de bens. Com os colonos, o escambo foi mantido. Os indígenas lhes forneciam alimentos e trabalhavam para eles, cortando madeira e transportando-as para a construção de prédios e embarcações. Também atuavam na derrubada e plantio de roças, recebendo em troca ferramentas, roupas e outros utensílios.

No entanto, a partir de 1532, com a criação da Capitania da Bahia, começaram as relações de conflito e resistência. Nessa época, chegaram os colonos portugueses com seus projetos de plantio de cana-de-açúcar e a escravização dos índios.

Maria Hilda aponta como a colonização mudou a vida dos indígenas: "A criação do gado, o plantio da cana de açúcar e a fixação de colonos nas terras implicou na mudança radical das relações: escravização, tomada das terras dos aldeamentos, competição por alimentos  e fixação dos colonos. Isso não ocorria nas relações de escambo".

Em Salvador, os tupis viveram em diversas aldeias. Uma delas, Vila Velha - também conhecida como povoação do Pereira -, ficava no Porto da Barra, perto do ponto de desembarque de Tomé de Souza. Foi ali que os jesuítas rezaram a primeira missa em solo soteropolitano. Ali, foi instalada a vila do Pereira, usando como ponto de apoio os índios e cuja área da aldeia ocupava os sítios hoje conhecidos por Graça e Santo Antônio da Barra.

Segundo a professora Maria Hilda, há apenas um monumento na cidade que pode ser relacionado à presença dos tupis aqui: ele fica em frente à Igreja da Graça. "Ali era a aldeia de Caramuru, que teria sido construída uma igrejinha  no contexto da negociação entre a Ordem de São Bento e Catarina Paraguaçu, que doou praticamente todos os terrenos do aldeamento fundado para Caramuru", afirma a especialista.

No Morro do Conselho, ficava a Aldeia Nossa Senhora do Rio Vermelho. "Em 1557, ocorreu grave revolta na aldeia devido à insatisfação dos indígenas com a pressão dos missionários para que os catecúmenos [os que se preparam para ser batizados] e convertidos  abandonassem a prática da poligamia, traço marcante da organização social dos Tupinambás", observa Maria Hilda.

Há ainda outras aldeias onde os tupis viveram, como a do Calvário, que hoje corresponde ao Carmo e a de São Lourenço, nas proximidades da aldeia de Nossa Senhora do Rio Vermelho. Em Plataforma, no interior da Baía de Pirajá, estava a Aldeia de São João e ali perto a Nova Aldeia de São João. Existiam ainda, a Aldeia de Santiago, também em Pirajá; a Aldeia do Simão, entre o Forte de São Pedro, Gamboa e Passeio Público e a Aldeia do Espírito Santo, em Abrantes, hoje Região Metropolitana de Salvador.

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