Os sons do mar dentro da concha

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  • Kátia Borges

Publicado em 23 de maio de 2021 às 11:19

- Atualizado há um ano

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Guardo comigo uma concha gigante. Elemento decorativo considerado kitsch, foi trazida da casa de meus pais, que a herdaram de meus avós. Nos anos 80, reinava absoluta em nossa sala de visitas, exposta em um escaparate de madeira, entre bibelôs de cerâmica e coleções intocadas da Barsa, compradas de um vendedor com sorriso sofrido que ia, de terno em qualquer estação, vender enciclopédias de porta em porta. 

Gosto muito da concha gigante, porque ela me leva ao estreito da infância. Olho para ela hoje, aboletada no alto da estante do meu pequeno escritório, e penso na imensidão do mar. Porque, para mim, ela ainda  funciona como uma espécie de rádio, cuja frequência sintoniza do Antártico ao Atlântico. Essa brincadeira que se aprende criança. Escutar o movimento das ondas, imaginar oceanos dentro de uma concha. 

Porque era bem comum que meninos e meninas com conchas gigantes em casa colassem o ouvido na superfície calcária e escutassem com nitidez o barulho das águas. Aquela estranha melodia, que ecoava nos labirintos internos em espiral, dispensava qualquer artifício de amplificação. Uma primeira ilusão sonora. Acreditávamos nessa conexão. O ambiente seco e os sons líquidos emergindo do imaginário azul. 

Penso que era dentro de nós que ouvíamos. Mas é apenas um fenômeno físico chamado reverberação. Agora, imponente em sua autoridade de relíquia, a concha gigante encima uma pilha de livros de arte. Exposta, entre a caixa marrom de uma Olivetti Lettera 82 e um vinil de Farewell song, disco póstumo de Janis Joplin, instaura o silêncio da vida adulta em distanciamento continental. Do mar e de todos. 

Sempre que a saudade aperta, olho para a concha gigante e quase sinto o cheio do óleo com que minha mãe encerava o móvel de madeira. Revejo a delicadeza de seus bibelôs de cerâmica. Lamento a perda da Enciclopédia Barsa, que meu pai pagou em mil prestações e a que nunca dei grande importância. Além da ilusão do mar, a concha gigante parece conter também os sons profusos da memória. 

Lembro de vasculhar muitas vezes, com esses mesmos olhos curiosos, as reentrâncias daquele objeto, como quem investiga um artefato extraterrestre caído na Terra por descuido. Buscava vestígios dos oceanos que supunha estar dentro dele, solidificado abrigo para algum molusco. E se quero me sentir segura nesse mundo, colo o ouvido na superfície calcária da minha concha gigante e escuto.