Os três bilhetes

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  • Gabriel Galo

Publicado em 9 de novembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Assim conta a anedota do mundo corporativo: um executivo assumiu a cadeira de presidente de uma grande empresa. Ao varrer o escritório que passaria a ocupar, deparou com uma pequena caixa. Dentro, havia três envelopes numerados e uma carta que dizia “abrir somente em caso de crise grave.”

Pouco tempo depois, a empresa se viu diante de problemas. Depois de muito tentar contornar a situação, o executivo se lembrou da caixinha. Abriu o primeiro envelope. Nele estava escrita apenas uma frase: “culpe o presidente anterior”. E assim o fez.

Não tardou, nova tempestade estava a destruir o negócio. Uma vez incapaz de tratar por si da questão, o presidente, agradecido pelo primeiro envelope, recorreu à caixinha. Abriu o segundo envelope. Nele estava escrita apenas uma frase: “culpe o mercado”. E assim o fez.

Mas tantos problemas empurrados com a barriga uma hora cobram seu preço. E novo desmoronamento financeiro desestruturava a empresa ao ponto de quase falência. Sem ter pra onde correr, o presidente apelou ao último envelope. Abriu-o sabendo ser o último. Nele, estava escrita apenas uma frase: “peça demissão e recoloque os trÊs envelopes de volta na caixinha”.

Esta historinha é ensinada com sarcasmo nas faculdades de Administração. Nas escolas de expertises (cof cof, desculpa, tossi aqui), o conto da incompetência do presidente que assume resume os argumentos vazios daquele que, inapto a resolver os problemas, abusa de retóricas espúrias -a incitação do medo entre elas- disfarçar sua própria incapacidade. E, reparem, que nunca, em nenhum momento, nem a título contextualização de narrativa da carochinha, ousaram culpar os clientes da empresa. O conto também ajuda a identificar aqueles despreparados num instante. É fato: quem lança mão desses porquês não faz ideia do que está fazendo.

É que os resultados, alheios às palavras em caixa alta, insistem em chegar. E nem adianta espernear. Fatos não se dobram a veja-bens por muito tempo. Aí, minha gente, nem adianta distorcer estatísticas de posse de estoque, inventar falácia de aplicativo que só existe nas nuvens da imaginação, lançar produto baby look em que se marqueteia a beleza-sem-uso de algo que literalmente não cabe. Enquanto isso, o centro do negócio segue sangrando, esvaindo-se de valor a cada rodada de fechamento contábil. E quando auditoria bate na porta, sai de perto, porque coisa boa não há de vir, e o risco de desaprovação é alto, quase certo.

A anedota parte de outras duas premissas igualmente válidas e indissociáveis entre si.

A primeira diz respeito à relação pessoa x empresa. Não se arrisca transpor a relevância individual para além da instituição. Maior sempre será a empresa sobre a pessoa que esteja ocupando a cadeira de executivo-mor.

A segunda, é de caráter humano. No conto, acredita-se que o presidente, mesmo que o mais absoluto incompetente, reconhecerá a mediocridade de seu trabalho e pedirá pra sair, ao mesmo tempo em que reescreve as mensagens a quem lhe suceder, numa transição pacífica de poder.

É nestes quesitos que reside a brecha a ser explorada por quem não tem a validade saudável das relações humanas na mais alta conta. Aqueles com afeição pelo autoritarismo chulo e violento tendem a não largar o osso. Acuados pela verdade, vão para o ataque desesperado, mesmo que isso signifique destruir por completo a instituição de juraram proteger.

Alguns enxergam a renúncia da anedota como sinal de fraqueza. De uma certa forma, é. Mas é uma fraqueza de ver-se incapaz de liderar uma instituição para a frente, de pôr-se vulnerável na tabela de resultados quantificáveis, que superam qualquer narrativa tola. É fraqueza técnica, portanto. Não de espírito. Há de se convir: diante da inegabilidade dos fatos, diante de exposição ampla da incompetência, renunciar é ato de dignidade e de preocupação com o futuro da instituição. É recurso para nobres. Incompetentes, sim; mas nobres.

Confiar na nobreza de caráter de quem vem é a falha original e irremediável do sistema, o que o torna aberto a ser explorado por autoritários. Alguns enxergam a renúncia da anedota como sinal de fraqueza. De uma certa forma, é. Mas é uma fraqueza de ver-se incapaz de liderar uma instituição para a frente, de pôr-se vulnerável na tabela de resultados quantificáveis, que superam qualquer narrativa tola. É fraqueza técnica, portanto. Não de espírito. Há de se convir: diante da inegabilidade dos fatos, diante de exposição ampla da incompetência, renunciar é ato de dignidade e de preocupação com o futuro da instituição. É recurso para nobres. Incompetentes, sim; mas nobres.

Gabriel Galo é escritor