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Kátia Borges
Publicado em 27 de setembro de 2020 às 11:00
- Atualizado há um ano
Bastava atravessar a rua. A viela estreita surgia e, então, a derradeira pista antes da entradinha calçada com paralelepípedos. Ali ficava o mar . Na vazão, andavam com os pés descalços enfiados na areia fofa, cruzando bairros conhecidos, um a um, até o Humaitá. Só na grama verde que cercava o forte antigo, botavam os sapatos.
Uma ladeira sinuosa, ao lado do forte, levava até onde ficavam o mosteiro, a bela igrejinha de Nossa Senhora de Montsserat e o farol. Conjunto arquitetônico do século XVI. Um píer de pedras fazia às vezes de trampolim para mergulhos. E o reflexo da luz nos capacetes verde-oliva dos soldados contrastava com o azul.
Porque havia um quartel logo ao término da descida da ladeirinha. E os militares em guarda olhavam com curiosidade, através das grades do portão, os recém-chegados, turistas estrangeiros e jovens. Ali ficava o pôr do sol. E eles se rendiam ao seu brilho, alguns até aplaudiam, inspirados em cenas de novela.
Da varanda do apartamento, o mar ao longe é quase oásis. A pequeníssima parte que se avista abriga o Atlântico inteiro. Um cargueiro cinzento atravessa a paisagem e se esconde atrás dos prédios altos, em meio a casas de tijolos aparentes. De vez em quando, sempre à noite, escuta-se o barulho de fogos de artifício.
Será Ano Novo em setembro — tantos eventos antecipados? Também da janela do quarto, vê-se o mar possível hoje. Muro azul que não se move, raras nuvens, arranha-céus, o jardim onde passeiam cachorros. A vizinhança fazia um alvoroço de latidos e coleiras entrelaçadas, aniversários, pais e mães de pets.
Voltar ao mar será como a primeira vez. Pensarão nem saber mais até que fique fácil, a água morna a envolver o corpo, o gosto do sal. Os pés descalços enfiados na areia fofa. A caminhada em paralelo ao oceano. Os amigos contando vantagem sobre a rapidez em alcançar um ponto indefinido no horizonte.
E, então, o gramado verde de algo que seja forte, antigo, secular, onde farão uma pausa para calçar os sapatos e percorrer o caminho restante. Silenciosos monges, celebrando o término da clausura. Devotos da santa espanhola. Píer de pedra que se estende ao infinito, convite ao mergulho. Outras paisagens deste século, talvez.
Kátia Borges é escritora e jornalista