Padre Cícero, pau de arara e a visão do passado

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  • Da Redação

Publicado em 7 de fevereiro de 2022 às 05:00

- Atualizado há um ano

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“O mito é o nada que é tudo”, diz o poema Ulisses, de Fernando Pessoa, do livro Mensagem. Um dos mais belos livros da língua portuguesa. 

Acaba de sair, pela EDUFBA, meu livro As Tentações de Padre Cícero, peça que escrevi e estreei em 2018, e teve sua carreira interrompida pela pandemia. Antes de botar qualquer linha no papel, eu precisava conhecer mais deste mito nordestino, para compreender menos, e, assim, pôr minhas dúvidas no papel.

Descobri uma história digna dos épicos do cinema, “cheirando a pólvora e incenso”, como escreve Braulio Tavares no prefácio no livro. Tentei colocar na peça os momentos que mais me marcaram, desde a perseguição do Vaticano, por conta de um milagre atribuído a Cícero e à beata Maria de Araújo, até a Sedição de Juazeiro e a deposição do governador do Ceará. Passando pela emancipação de Juazeiro do Norte, sendo Cícero Romão Batista seu primeiro prefeito, até seu encontro com Virgulino Ferreira, o famoso Lampião.

Em meio ao processo, março era o aniversário do padre e pude ir às comemorações, em Juazeiro do Norte, e lá encontrar com Dane de Jade. Essa mulher incrível me fez mergulhar num Cariri profundo, das manifestações populares a conhecer, e ter autografado pelo próprio, um livro escrito por Monsenhor Ágio sobre Cícero. De visitar e conhecer Espedito Seleiro a ir ao Caldeirão, lugar mítico onde uma comunidade religiosa foi massacrada pelo Estado.

Minha peça foi uma grande colcha de retalhos, e lancei mão de teatro popular, teatro épico, realismo, repente, desafio e embolada, fui abordando as diversas histórias buscando encená-las dentro de seu espírito.

Curiosamente, fui buscar meus exemplares quando da declaração equivocada e preconceituosa – e já corriqueira – do atual presidente do país. Ele, que havia estado aos pés da estátua de Padre Cícero, confundiu sua origem, em meio à discussão sobre lutos oficiais. E ainda completou chamando alguns assessores de “paus de arara”. Curioso ele ter usado uma expressão que tanto serve para imigrantes, que buscam fugir da miséria e da seca para tentar ganhar a vida nos grandes centros, como serve também para apelidar um instrumento de tortura, muito usado pelo homem que enfiava ratos nas vaginas das mulheres, durante a ditadura, e é o ídolo do nosso atual presidente. Prefiro não escrever o nome do criminoso, aqui.

Na região do Cariri, percebemos um tipo de gente que tem uma força e uma raiz tão intensas, que ali se vê o que pode ser uma pessoa brasileira, ou nordestina, ou cearense, ou caririense; ou simplesmente gente.

Gente a quem não foi permitida uma “visão de futuro”, como queria o presidente que os afetados pelas enchentes de São Paulo tivessem. Eles ficaram ali, cresceram ali porque é o que lhes coube, lhes foi dado neste país tão desigual e opressor; e puderam fazer sua vida com fé e força, trabalho e resistência; como no Cariri.

Eu precisava falar de um mito brasileiro. Sim, a palavra mito, relativa a Padre Cícero, cai muito bem. Com suas contradições, polêmicas, mas com uma densidade e potência que, em vez de rir dos paus de arara, criou condições para que eles vivessem melhor em sua própria terra. Em vez de reclamar de uma falta de “visão de futuro”, buscou iluminar caminhos para seu povo.

A arte nos ajuda a olhar passado, e questionar o presente. O livro (já à venda na Amazon!) discute fanatismo, intolerância e preconceito, dentre outros. E sai em boa hora. 

Infelizmente, caro Pessoa, “a noite veio e a alma é vil”.