Pai de presidente da OAB foi vítima da ditadura e não dos próprios companheiros

Postagem no Twitter usa trecho de entrevista de um ex-guerrilheiro como sendo uma confissão do assassinato de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira

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Publicado em 31 de julho de 2019 às 17:57

- Atualizado há um ano

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Um trecho da entrevista para o programa Dossiê Globo News com o ex-guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional (ALN) Carlos Eugênio Paz foi utilizado em um post enganoso no Twitter como sendo uma confissão do assassinato de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira.

Fernando desapareceu durante o regime militar e era pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz.

O Comprova verificou, no entanto, que o trecho da entrevista se refere à participação de Carlos Eugênio Paz na morte de Márcio Leite de Toledo, um dos dirigentes da ALN. A reportagem completa foi ao ar em julho de 2012, tem 51min26seg e mostra a entrevista concedida por Paz a Geneton Moraes Neto.

Como verificamos O Comprova localizou a entrevista completa em uma busca pelos nomes “Geneton Eugênio Paz” no site da Globo News e assistiu ao trecho que contém as falas utilizadas na postagem no Twitter. Além disso, cruzou as informações relativas ao assassinato com a data e local do desaparecimento de Santa Cruz.

O que consta na íntegra da entrevista O trecho referente ao assassinato de Márcio Leite de Toledo começa aos 38min36seg do vídeo e se estende até os 43min23seg.

A partir de 38min49seg, Geneton pergunta: “Você participou no dia 23 de março de 1971 da execução de um militante da ALN, Márcio Leite de Toledo, que defendia uma pausa na luta armada e foi considerado inconfiável. Que argumento você usou na época para defender essa execução?”.

Esse questionamento não aparece na versão reduzida do vídeo que viralizou. Nela há apenas parte da resposta.

Na versão publicada no Twitter aparece a pergunta de Geneton feita no instante 42min39seg: “Você participou diretamente da execução então?”. A que Carlos Eugênio Paz responde: “(…) Participei, sim, da ação a tiros na rua, numa rua nos Jardins, num daqueles jardins lá de São Paulo. Como você disse, no dia 23 de março de 1971”.

Dados oficiais sobre o desaparecimento de Santa Cruz Fernando Santa Cruz consta na lista de mortos e desaparecidos políticos do relatório final da Comissão da Verdade (CNV). De acordo com o documento, ele sumiu em 23 de fevereiro de 1974, quase três anos depois do assassinato de Márcio Leite de Toledo, do qual Carlos Eugênio Paz confessou ter participado.

Além da discordância em relação ao ano de morte de Márcio Leite de Toledo, Santa Cruz desapareceu na cidade do Rio de Janeiro, enquanto o assassinato de Toledo, conforme mencionado na entrevista, ocorreu em São Paulo.

No item “Circunstâncias de Desaparecimento e Morte” do relatório da CNV, consta que Santa Cruz foi visto pela última vez ao deixar a casa do irmão, no Rio de Janeiro. Ele disse à família que encontraria o amigo de infância Eduardo Collier Filho. Antes de sair, teria informado que, se não voltasse até o fim da tarde, provavelmente teria sido preso, já que o amigo passava por processo na Justiça Militar.

Outro ponto divergente é que tanto Carlos Eugênio Paz quanto Toledo faziam parte da ALN, já Santa Cruz foi das organizações Ação Popular (AP) e Ação Popular Marxista Leninista (APML).

Segundo consta na página 1.607 do relatório: “conclui-se que Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi preso e morto por agentes do Estado brasileiro e permanece desaparecido, sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família”.

A Comissão da Verdade levanta duas hipóteses para seu desaparecimento. A primeira é de que ele e o amigo Eduardo Collier Filho teriam sido levados ao DOI-CODI, em São Paulo, e seus corpos tenham sido sepultados como indigentes no Cemitério Dom Bosco, na mesma cidade. A possibilidade é baseada em relatos de familiares, que afirmaram ter ouvido a informação de um funcionário do DOI-CODI. A outra hipótese é sustentada pelo depoimento prestado pelo ex-delegado do DOPS/ES, Claudio Guerra, que afirmou que os corpos dos dois militantes teriam sido incinerados na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ). As conclusões estão nas páginas 1.603 e 1.604 do relatório final da comissão.

Não consta na lista de mortos e desaparecidos políticos o nome do militante da ALN, Márcio Leite de Toledo, morto pelos militantes da ALN.

Carlos Eugênio Sarmento da Paz morreu aos 69 anos, no dia 29 de junho deste ano, em Ribeirão Preto (SP).

O vídeo fora de contexto foi postado no Twitter pelo perfil @Willianwallaci em 29 de julho e, no dia 30 às 17h30, possuía mais de 49 mil visualizações e 2.300 curtidas. A postagem no Twitter também foi verificada pelo G1.

Contexto Na segunda-feira, 29 de julho, o presidente Jair Bolsonaro reclamou da atuação da OAB na investigação do caso de Adélio Bispo, autor do atentado à faca do qual foi alvo. Na ocasião, Bolsonaro disse que poderia explicar ao presidente da entidade, Felipe Santa Cruz, como o pai dele desapareceu durante a ditadura militar (1964-1985).

“O pai do Santa Cruz integrava a AP, a Ação Popular de Recife, era o grupo terrorista mais sanguinário que tinha. E esse pessoal tinha algumas ramificações pelo Brasil, tinha uma grande no Rio de Janeiro. E o pai dele veio para o Rio de Janeiro”, afirmou Bolsonaro em vídeo publicado em sua página no Facebook. Segundo ele, integrantes da AP decidiram “sumir o pai do Santa Cruz”.

Questionado pelo fato de haver documentos públicos que mostram que o desaparecimento se deu após prisão pelo Estado, o presidente contestou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), grupo criado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2011 para investigar violações aos direitos humanos ocorridos durante o regime.

Saiba maisLeia a carta que as mães de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira e de Eduardo Collier Filho escreveram ao então Chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, em 27 de maio de 1974, apelando por ajuda para encontrar os filhos desaparecidos. Elio Gaspari: A realidade paralela de Bolsonaro (na Folha, para assinantes) Após ataque de Bolsonaro ao presidente da OAB, simpatizantes do governo espalham boatos infundados sobre Fernando Santa Cruz (no Estadão) O que dizem documentos oficiais sobre a morte de Fernando Santa Cruz (na Exame) *Esta checagem foi postada originalmente pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 23 veículos de mídia, incluindo o CORREIO, a fim de combater a desinformação a respeito de políticas públicas. Esta investigação foi conduzida por jornalistas do Metro e Folha de S. Paulo, e verificada, através do processo de crosscheck, por sete veículos: AFP, Band, Gazeta Online, Estadão, Folha de S. Paulo, Poder 360 e Jornal do Commercio.