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Kátia Borges
Publicado em 23 de janeiro de 2022 às 05:20
- Atualizado há um ano
Há pelo menos duas maneiras de conhecer Salvador. Uma delas é a fruição das belezas turísticas da cidade, catálogo que exibe 50 quilômetros de praias, 365 igrejas e um milhão de festas. Alguns dançam e se divertem, outros trabalham. O ciclo começa em dezembro e atravessa janeiro e fevereiro, até as águas de março.
A outra maneira, que é bem mais subjetiva, passa pela vivência no centro antigo, pelos ritos profanos que cercam o entorno de seus templos e pelo saudável caos orgânico que se traduz em São Joaquim, a indomável Feira de Água de Meninos, com seus labirintos insondáveis e suas folhas sagradas de beber e de banhar.
Para entender Salvador não basta conhecer a cidade turística ou sua face mística. É preciso respirar fundo e encarar a subida de suas ladeiras calçadas em pedra-sabão batizadas com nomes esquisitos. Preguiça. Boqueirão. Água Brusca. Nossas ladeiras, dizem, estão entre as mais inclinadas do mundo.
Certa feita um pesquisador chamado Eduardo Gantois – obviamente baiano – questionou os rigorosos critérios impostos pelo Guinness Book, o famoso Livro dos Recordes, que elegera na categoria “maior inclinação do planeta” a Rua Baldwin, na Nova Zelândia, e não as ladeiras do Pepino, da Lenha ou da Lapinha.
Bem mais que encarar uma dessas ladeiras, para entender a cidade, é preciso falar a língua que abre e fecha suas portas, seja no Corredor da Vitória ou no Santo Antônio Além do Carmo. Sotaque que vai além da variação na pronúncia dos fonemas. Um estar à vontade no mistério, muito mais que frases ditas em determinado ritmo.
E há ainda os seus cantos. Tantos. Nas encruzilhadas dos bairros pobres e dos bairros ricos. E seus ritos. Mitos. A qualquer hora do dia ou da noite. E é como se um feitiço morno pairasse sobre todos, algo por fazer para mudar algum destino. Segredo que se faz público naturalmente no espaço urbano.
Uma profusão de tonalidades que fazem a festa dos olhos. Terra onde as mães são deusas e os espíritos dos mortos dançam. Alguns não ganham nosso sotaque, antes fazem por merecer, conquistam. Você não descobre a cidade contratando um guia turístico. Você descobre a cidade ao se deixar perder.