Pelé e a divindade da camisa 10

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  • Gabriel Galo

Publicado em 26 de outubro de 2020 às 05:16

- Atualizado há um ano

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Quis o destino que a distribuição estranha dos números de camisas na Copa de 1958 colocasse a mítica camisa 10 nas costas de um jovem Pelé, que, aos 17 anos, faria no solo sueco sua apresentação ao mundo como majestade. Reinado que se consolidaria 12 anos mais tarde, ao vivo e em cores do México, quando, com o seu manto sagrado do eleito uniforme mais belo, comandou o melhor time de futebol que este planeta já viu.

Acostumou-se, com o tempo, a separar personalidades. Talvez a distinção entre o Edson e o Pelé se dê porque a exigência de perfeição em torno de Pelé é fardo com o qual nem ao menos o Edson é capaz de lidar.

Talvez esteja aqui a diferença elementar entre Pelé e o resto, especialmente Garrincha e Maradona. O gênio das pernas tortas e o pibe de ouro são indissociáveis em persona dentro e fora do campo. No gramado, levavam consigo suas histórias e defeitos. Vencedores, magistrais, são personagens com diversas camadas de profundidade, alheios à palavra cuidadosamente planejada. São espontaneidade bruta e se dispuseram a pagar o preço por isso.

Por sua vez, Pelé confunde-se com o futebol, flertou com a perfeição. Teria nascido bola, se não tivesse nascido gente, cunhou Armando Nogueira.

Armando, contudo, ouso afirmar, errou no conceito: Pelé não nasceu gente. Pelé nasceu mito. É personagem que existia tão somente no campo de jogo, distribuindo deslumbramento. Na capa do londrino Sunday Times depois do tri de 70 ensinava-se como soletrar Pelé: D-E-U-S. Mais tarde, fizeram-no Atleta do Século pela France Football. É infalível. Sobre-humano. Divino. Os gols que Pelé não fez são um presente aos normais, para que possam se dizer equivalentes em algo ao maior de todos.

Só que a iconoclastia é a gêmea malvada da idolatria. Ao mesmo tempo em que ídolos são exaltados, anseia-se por vê-los caírem. Não necessariamente pela humilhação da queda. Basta, pela manifestação inegável da humanidade demasiada, ver-se alguém absolutamente comum. Igualar-se em julgamento cotidiano ao ídolo é alívio às mentes daqueles com talentos menos sobressaltados, presos à realidade cruel da mediocridade do cotidiano.

É no purgatório da insignificância que reside o Edson. Com Pelé não há defeitos, polêmicas, malfeitos. Os escorregões são instantaneamente atribuídos ao Edson, a quem João Saldanha descreveu como “fora do campo, um homem comum.” Se um paira intocável e distante, o outro absorve os lamentos. Impossível manter-se de pé diante de tamanho desequilíbrio. Há tempos, o Edson está caído.

Limitado fisicamente por problemas no quadril, prende-se a maior parte do tempo a uma cadeira de rodas. Não é mais proprietário dos direitos sobre o seu alter ego. Entregou-se subserviente à Ditadura e pede clemência à ressurgência autoritária do desgoverno de agora. Não consegue sacudir a história de sua atitude perversa com Sandra, a filha que se recusou a reconhecer.

É objeto de opiniões sem peso e sem respeito. Romário proferiu em 2005 a frase que se tornou emblemática: “Pelé calado é um poeta.” Mais um que se confunde. Aquele a ser calado não era Pelé; era o Edson. Quanto vale o Edson? Quanto vale um qualquer?

Recuso-me, pois, a embarcar em senões e ataques tanto a Pelé, quanto ao Edson. Ao primeiro, porque impossível. Conforme escreveu Guilherme de Almeida, Pelé é um condenado à glória. Seus 80 anos são uma celebração coletiva inadiável. Afinal, o que seria do futebol sem ele?

Relembrando a fala de Armando Nogueira, quem nasceu gente foi o Edson. E este não tem muito o que dizer. Nem teria como. O Pelé sugou-lhe toda sua relevância, restando falhas, saudades e uma incômoda realidade de ser-se absolutamente comum. Iconoclastas por natureza, de perto, tendemos a antagonizar até com os personagens que criamos para nós mesmos.

Gabriel Galo é escritor