Pequena flor no coração

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  • Kátia Borges

Publicado em 17 de outubro de 2021 às 16:00

- Atualizado há um ano

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Tenho cá pra mim: todo Chihuahua é um gato com DNA canino. Tipo um milagre por erro, como esses que acontecem no amor e na morte. O lapso criativo de um Deus que me comove, justamente por não ser a perfeição que tantos dizem. Só isso explica a independência desses serzinhos, sempre seguros, apesar do tamanho diminuto; a necessidade que sentem de derrubar objetos; o estranhamento em relação a todo ser humano de quem não se considerem donos. 

Vá lá, talvez haja algum exagero nas observações do convívio recente com um desses menores cães do mundo. O irmão mais velho de Lis, Billy, era um poodle simpático e gigante, tenho esse crédito de estranheza. Vivemos juntos durante dezoito anos. Sua velhice e sua morte, enfrentei com muitos mantras ganeshianos e a esperança ingênua de retorno num outro filhote, algum que surgisse, e surgiria inevitavelmente, já que considero inconcebível a existência sem um cachorro. 

Devo dizer que um Chihuahua nem era a primeira opção, quando o meu coração ainda em luto deu de pedir com birra, feito criança pequena, berrando, jogando-se no passeio, contra toda racionalidade possível. Difícil viajar, poucos hotéis aceitam, veterinários são caríssimos, estamos no meio de uma crise sanitária. Ainda bem que esse meu Deus distraído estoura bolhas no plástico com que empacotamos os sonhos. Deu de vir a pequena Lispector (uma flor no coração, como Clarice tenta traduzir, enrolando-se um pouco, em sua última entrevista na TV). 

Deu de vir assim, sem planos, cama fofa, brinquedos coloridos, potes de alimentação com nome gravado. Tudo no improviso, decidido em minutos. Fui ler de véspera algo que preparasse um cantinho de entendimento entre nós, para quando ela chegasse e nos olhássemos pela primeira vez. Descobri que Chihuahua vem do México, alguns até falam que são sagrados, pois capazes de proteger contra malefícios. 

Ah, mas isso ninguém faz melhor que cão sem raça, um desses amarelinhos com olhos de azeviche, sempre prontos para saltar dentro do seu carro, capazes de amar qualquer passante que lhes atire um osso ou um olhar. Bem antes de Lispector chegar em casa, temerosa de tudo, arisca como um felino, lembro de um dia entrar por engano em uma sessão do filme Perdido pra cachorro. E de nunca ter saído. 

Kátia Borges é escritora e jornalista