Pequenas vítimas da covid-19: o drama de quem teve suas crianças internadas na UTI

Total de 147 crianças de até 12 anos testaram positivo em Salvador. Em toda a Bahia, foram 254 crianças entre 1 e 9 anos; duas morreram

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 31 de maio de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Colagem Morgana Miranda/CORREIO

Pedro ia fazer 60 dias sem jogar bola, sem brincar com os amigos, enfim, sem sair. Os pais sabiam que era melhor vê-lo preso em casa do que doente. Apesar de todos os cuidados, o menino acabou infectado pelo novo coronavírus e entrou para a estatística das 147 crianças entre 0 e 12 anos que, segundo a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), haviam testado positivo para covid-19, em Salvador, até a última terça-feira (26).

O número corresponde a 1,6% do total de casos confirmados na capital baiana, onde foram registradas duas mortes até esta idade. Apesar do percentual aparentemente baixo, Pedro é a prova de que essas crianças existem e estão deixando assustadas muitas famílias. Em toda a Bahia, segundo o boletim epidemiológico da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) divulgado na quinta-feira (28), 254 crianças entre 1 ano e 9 anos se infectaram com a covid-19. O boletim da Sesab divulga os dados por faixas etárias.

Se for incluída a faixa até 20 anos, o número sobe para 563 crianças e adolescentes infectados. Diferente da maioria dos casos que envolvem meninos e meninas de sua idade, Pedro, aos 12 anos, acabou indo parar em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI).“Não se pode subestimar o coronavírus. Nunca achei que meu filho ia passar por isso. Todo cuidado é pouco”, disse a agente de aeroporto Aline de Avila Gussen, 37 anos, mãe de Pedro, que se diz assustada com a quantidade de crianças nas ruas.“Tenho visto muita criança passeando nas ruas com os pais ou brincando com os amigos. Vi até mãe com máscara e a criança sem máscara. As pessoas acham que criança não corre risco, mas corre!”, alerta Aline. Pedro saiu do período de quarentena na quarta-feira, quando repetiu os exames para confirmar que estava imune ao vírus. O restante da família, a mãe, o pai e a irmã, de 15 anos, fizeram o teste em um laboratório e aguardam o resultado. Pedro e sua mãe Aline: ele ficou 5 dias internado na UTI do Hospital Santa Izabel (Foto: Acervo Pessoal) Provavelmente, Pedro contraiu a doença após uma das saídas do pai ou da mãe para ir ao supermercado. “Só eu e o pai dele saíamos. Na chegada a gente fazia todo aquele ritual de tirar a roupa e ir tomar banho. Passávamos água sanitária nos sapatos, lavávamos as mãos, mas não teve jeito”. No início, conta a mãe, tudo parecia ser mais uma daquelas gripes infantis. O menino começou sentindo dores de garganta e febre.

Pedro não teve problemas pulmonares. Como ele sempre teve muita crise de garganta, os pais acharam que era mais uma delas. Não era. Cinco dias com antibióticos e os sintomas persistiam. Pedro passou a apresentar vômitos também. Levado para uma clínica de Lauro de Freitas, fez exames de sangue.

As plaquetas mostraram níveis baixíssimos e o pequeno paciente acabou transferido para o Hospital Santa Izabel, em Nazaré, onde seu teste de covid-19 deu positivo. “Tem que ficar atento a todos os sintomas e não só falta de ar. Porque é aí que o vírus pode fazer um estrago”, observou a mãe. Sem atacar o pulmão, o coronavírus acometeu outros órgãos, especialmente o fígado e o estômago.

Pedro ficou internado cinco dias na UTI do hospital. Enquanto estava isolado, por ser criança, tinha a companhia da mãe. “Eles deixaram eu ficar com ele na UTI, mas a gente ficava longe de tudo e de todos. Não saía pra nada. Os enfermeiros com aquelas roupas de astronauta, a gente não sabia nem quem era quem. Isso para uma criança é muito difícil”, relatou a mãe, que, mesmo isolada com o filho, percebeu que havia outras crianças internadas na UTI exclusiva para coronavírus.  

O Hospital Santa Izabel informou que sua pediatria foi "readequada para garantir a prestação de um serviço qualificado". O hospital diz que funciona com fluxo diferenciado para encaminhamento dos pacientes e o combate à pandemia envolveu a preparação de uma estrutura especializada. O setor pediátrico conta com terapia intensiva, leitos ambulatoriais e assistência de emergência. A taxa média de ocupação está em torno de 68%. 

Uma enfermeira que trabalha na UTI pediátrica do Santa Izabel, que prefere não se identificar, diz que costuma acompanhar de perto a aflição de familiares. Na maioria dos casos, as crianças foram infectadas pelos próprios parentes.“Tivemos o caso de uma criança que pegou da mãe, que estava assintomática e não acreditava que tinha covid. Antes do teste, essa mãe ficou revoltada porque decidimos internar a criança na UTI de covid-19 como suspeita. Só entendeu depois, quando testou positivo”, conta a enfermeira, que, em sua maioria, atende pacientes estáveis. “É difícil um caso de criança entubada. A maioria apresenta uma manifestação branda da doença”.Infecções Apesar disso, a própria Sociedade Baiana de Pediatria (Sobape) confirma que existem, sim, infecções que cursam com gravidade na faixa etária pediátrica. É verdade que, quando comparado com a população geral, a população pediátrica até 15 anos de idade apresenta casos mais leves, benignos e assintomáticos. Nada garante, porém, que uma criança não seja acometida na forma mais aguda da doença.

A infectologista pediátrica Anne Layze Galastri, da Sobape, afirma ter acompanhado alguns casos graves em Salvador. “De modo geral, as crianças não cursam com necessidade habitual de internação, há uma necessidade menor de UTI, de ventilação mecânica e até mesmo menor chance de mortalidade. No entanto, sabemos que elas podem cursar também com infecções graves e temos visto alguns casos”, afirma a médica, que é especialista em Vacinas e Medicina de Viagem pela Universidade de São Paulo (Usp).  

“Não é porque as crianças costumam ter um quadro mais leve que a covid vai se apresentar sempre mais leve”, insiste. Boa parte das que evoluem para casos mais graves, diz Anne Galastri, têm doença de base sérias, a exemplo de doenças cardíacas congênitas, má formações de sistema nervoso central e oncológicas. “Estes têm um risco maior de internação e até risco do óbito”, afirma.

Secretário: dois filhos com covid-19 “Olha, foi muito difícil pra mim enfrentar esse momento. Saiu o secretário e entrou o pai. Rapaz, bateu o desespero”. O depoimento é do secretário municipal de saúde, Léo Prates, que em pleno enfrentamento à pandemia viu seus dois filhos, Julinha, de 10 anos, e Leozinho, de 5 anos, serem infectados pelo coronavírus.

A partir do momento que o resultado dos exames saiu, Léo Prates teve que enfrentar o problema à distância. Hospedou-se em um hotel, deixou a esposa com as crianças e passou a acompanhar tudo por mensagens e chamadas de vídeo. Julinha ficou assintomática. Leozinho teve febre alta. Ambos foram tratados em casa. “O pediatra acompanhou o tempo todo. Até que as coisas se tranquilizassem, a gente ficou muito preocupado”.

Tanto Léo Prates quanto a esposa, que é epidemiologista, testaram negativo para covid-19. Como se deu o contágio? “Rapaz, até hoje isso é um mistério”, afirma o secretário, que faz um alerta aos pais: “Eu queria dizer aos pais que tenham atenção e destacar a necessidade de se tomar todas as precauções. Tem que evitar que as crianças brinquem com outras que não estejam isoladas com elas, evitar que visitem os avós. Sabemos que isso é muito forte na nossa cultura, mas é preciso evitar. Criança tem que ficar em casa”, aconselha o secretário, que teve também dois sobrinhos com covid-19. “Meus pais sofreram muito porque tiveram quatro netos infectados”.  

Léo Prates diz que Salvador está preparada para atender as crianças, inclusive os casos mais graves. O município contratou junto ao Hospital Martagão Gesteira (HMG) 10 leitos de UTI e 10 de enfermaria para crianças com perfil covid-19. Há também sete leitos de UTI no Hospital Municipal de Salvador.

No Hospital Municipal, até terça-feira, não havia nenhum leito de UTI ocupado. Já no Martagão, haviam três crianças na UTI e nove na enfermaria. A situação é tranquila, mas não se pode esmorecer. Quem mais sabe disso são os profissionais do próprio Martagão Gesteira, que trata de crianças com câncer. São meninos e meninas já muito debilitados pelo problema oncológico e que agora enfrentam uma infecção por vírus.  

"O que temos visto no Martagão e nos outros serviços de Oncologia no Brasil e no mundo é que os pacientes oncológicos pediátricos com a covid-19 têm se comportado como as crianças não oncológicas, sem maior gravidade, mas ainda sem muitos casos neste grupo que sustentem que este é o padrão de evolução. Vale ressaltar também que já há relatos de pacientes oncológicos pediátricos com gravidade aqui no Brasil em outros serviços, muito ligados a um tipo específico de câncer”, afirmou Risvaldo Varjão, diretor médico do Martagão Gesteira.

O Martagão Gesteira é referência no estado da Bahia para o tratamento da covid-19 na faixa etária pediátrica e, até o momento, já investigou 136 casos suspeitos da doença. Destes, 16 tiveram resultado positivo.

Metade desses casos teve curso leve, sem maior gravidade, e a outra metade teve maior gravidade e necessidade de UTI. "Dos nossos casos que foram para a UTI, apenas um teve uma permanência por 15 dias, mas evoluiu com melhora e, curado, teve alta do hospital", afirmou Risvaldo.

Atualmente, diz o diretor, a recomendação do departamento de oncologia da Sociedade Brasileira de Pediatria é de que os pacientes oncológicos não tenham seu tratamento retardado devido à covid 19, mas as condições clínicas é que vão definir se a criança pode ou não iniciar ou continuar seu tratamento no momento. Quanto ao tratamento para covid 19 nestes pacientes, segue os mesmos princípios das outras crianças. "Até o momento já tivemos três crianças com covid 19 em nosso serviço, sendo que duas já tiveram alta, curadas da covid, mesmo tendo cursado com necessidade de UTI".

Síndrome inflamatória infantil pode estar sendo provocada por coronavírus  A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) divulgou um documento no dia 19 de maio alertando para a possibilidade de a covid-19 provocar em crianças a chamada Síndrome Inflamatória Multisistêmica. O documento sugere que o aumento de casos da síndrome esteja associada ao novo coronavírus.   

Ainda não é comprovado que esses casos tenham ligação formal com o coronavírus. A relação é temporal. Ou seja. Uma parte das crianças que teve esse quadro acabou tendo um pouco antes o coronavírus. Enquanto os adultos podem sofrer o que os médicos estão chamando de cascata inflamatória, com vários órgãos sendo atingidos ao mesmo tempo pelo vírus, as crianças estariam sofrendo inflamação semelhante, no caso, essa síndrome.

“São relatos do Reino Unido e dos Estados Unidos em que crianças tinham quadro de coronavírus uma semana antes e depois desenvolveram esse quadro inflamatório. Enquanto não se comprova cientificamente esse relação, o que vamos fazer? Prevenir a infecção pelo coronavírus”, afirma a infectologista pediátrica Anne Layze Galastri, da Sociedade Baiana de Pediatria (Sobape).

A Síndrome Inflamatória Multisistêmica é uma forma exarcebada do que os médicos chamam de Doença de Kawasaki, que causa a dilatação das artérias coronárias. É uma doença que tem tratamento, mas na sua forma mais grave ela pode complicar. “Kawasaki é uma doença rara, mas a covid-19 pode estar sendo um fator que desencadeia ela. Esse é mais um motivo pra gente ter atenção com as crianças”, diz a médica.

No dia 25 de maio, o número de países que registraram casos da doença inflamatória ligada à covid-19 havia dobrado em uma semana, segundo o governador de Nova York, Andrew Cuomo - agora eram 13. Nos EUA, 25 estados já haviam registrado a doença. Os mais numerosos relatos vinham também do Reino Unido, França e Espanha.

Em Salvador, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) afirmou que acompanha a situação epidemiológica e a ocorrência da síndrome em crianças (Síndrome de Kawasaki) no mundo e no Brasil. “Entretanto, até o momento, não recebeu nenhuma notificação sobre a ocorrência de casos”, diz a nota da SMS.

Cuidados com as crianças Assim como os adultos, as crianças devem cumprir a quarentena à risca e tomar alguns cuidados se precisar sair, inclusive com o uso de máscaras. Veja orientações da Sociedade Baiana de Pediatria (Sobape).

- Descer para o playground, sair à rua para brincar com outras crianças ou ir para a casa dos amiguinhos não é isolamento. Existe o risco de contágio pelo coronavírus.

- Tarefas de adultos, como ir na farmácia ou supermercado, devem ser feitas pelos adultos. Não é recomendada a companhia das crianças nesses momentos.    

- Se for muito necessário sair à rua, crianças maiores de 2 anos devem usar máscara. Os pais ou responsáveis devem tentar fazê-las cumprir o distanciamento social e alertá-las sobre os perigos de tocar nos objetos e superfícies. 

- Se tiver menos de dois anos, as crianças não devem usar máscara. Além de não saber usá-la corretamente, o que pode aumentar o risco de infecção, existe também o risco de asfixia.

- A não ser que estejam isolados junto com os netos, o vovô e/ou a vovó não devem ser visitados pelas crianças. Como são vetores de transmissão (muitas vezes assintomáticos) do vírus, elas são um risco para os mais velhos.