Pequeno inventário clariceano

Crônicas

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  • Kátia Borges

Publicado em 8 de maio de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Entre os desafios que me propus para manter o ânimo, desde que mergulhamos nessa espiral coletiva de sofrimento, está reler toda a obra de Clarice Lispector, um projeto pessoal que já vinha mantendo com certa regularidade antes de março do ano passado. Livros que li na adolescência, como Água Viva e A paixão segundo G.H, ganharam novos significados. Talvez pelo fato de hoje ter a alma um pouco mais formada.  

Um deles, A hora da estrela, cutucou a minha imaginação de um modo completamente diferente da primeira leitura. Entre as peripécias de Macabéa e Olímpico, encontrei agora com espanto referências subliminares de outros textos e personagens da autora. Como se Clarice tivesse deixado de propósito, numa manobra literária engenhosa, fragmentos de suas narrativas pulsando no interior do derradeiro romance, espécie de quebra-cabeças literário a ser montado pelos leitores, quiçá um teste. 

Intrigada com essa descoberta do mundo, que pode não ter sentido algum, venho distraindo as tristezas e os medos, em meio à pandemia, enquanto releio A hora da estrela, caçando sentidos ocultos e compondo um pequeno inventário clariceano de (im) possíveis referências. Com o descompromisso de quem lê sem pressa e sem ter que prestar contas da leitura, observo pontos de contato entre sequências e personagens, movimentando livremente o pouco que conheço de seu extenso imaginário.  

Céticos dirão que há uma grande ilusão nessa minha releitura. Não contesto. Leitores corretos argumentarão que as palavras em Clarice Lispector atraem como um imã e se repetem como um mantra. E que há também aquela coisa de “o é da coisa” que repousa no fato de as coisas serem como são, absolutamente incomunicáveis e, por essa razão, mágicas. Para lá de Marrakesh, presa em meu bunker, reinvento a pólvora a cada explosão na vida da nossa doce protagonista tonta.   

Mas lá está, entre vida e morte, amor e abandono, como parte da premonição que cerca o futuro de Macabéa, e o lírico cálculo das probabilidades, a simbologia da rosa. Contemplação e loucura, ambos em desproporção. Também traço paralelos entre o Martim de A maçã no escuro e o Olímpico de A hora da estrela, ambos homens transgressores, fugidos de passados e crimes. E o passeio ao zoológico, no qual a presença do animal fecha e abre sentidos como no conto O búfalo.  

Me peguei surpresa ainda com as semelhanças entre a personagem Glória e a menina má do conto Felicidade Clandestina, seja por suas características físicas ou pela generosidade dissimulada em relação a Macabéa, a quem de certo modo inveja. Mas, meu Deus, inveja em que? A inveja é como o amor, de alguma forma, um sentimento que nasce sem grande fundamento. E há, por fim, uma referência à pequena anã que, de A menor mulher do mundo, parece se mover agora no terreno dos subúrbios do Rio de Janeiro. E tudo isso eu vejo e anoto sem qualquer propósito. 

Kátia Borges é escritora e jornalista