Pode criticar Djamila, sim, ou ‘quem não quer ser visto não se mostra’

Que o Brasil colonial, de estado insuficiente de civilidade, não está preparado para homens e mulheres pretos/as em posições de poder, é fato

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 21 de agosto de 2021 às 05:20

- Atualizado há um ano

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Houve uma grande ialorixá, aqui na Bahia, chamada Maria Stella de Azevêdo Santos. Mulher nobre e luxuosa em tudo aquilo que importa, de uma forma que raríssimos humanos conseguem ser nobres e luxuosos. Entre as atividades do sacerdócio, da nobreza, da generosidade, da sabedoria e outras tantas que devia ter, Dona Stella escrevia. Durante um tempo, artigos que eu gostava de ler. Um deles vem sempre à minha cabeça quando alguém declara que é vítima de inveja. "Reflexão sobre a Inveja" foi escrito em 2010 e, desde então, é a minha "referência bibliográfica" quando quero dizer que inveja denunciada, normalmente, é viagem errada do/a suposto/a invejado/a.

("Nunca, nem um só dia sequer, alguém chegou me pedindo ajuda para se libertar da inveja que sentia dos outros. Será que só existem invejados? Onde estarão os invejosos?'", disse Dona Stella.)

Tempo passou e tenho lembrado muito disso, nas últimas semanas, com esse caso que não sei se você está acompanhando. É o seguinte: Djamila Ribeiro, que se define "best seller, professora, editora, mãe, candomblecista, premiada, preta e linda", uma escritora antirracista do Brasil, aceitou participar de uma campanha para uma marca amplamente acusada, há alguns anos, de ter posturas racistas. A treta é grande e perdura com defesas apaixonadas e acusações ferrenhas. Djamila apenas diz: "O Brasil colonial não estava preparado. Seguimos plenas". Pois bem. A questão é que, talvez, valha a pena pensar um pouco além de caravanas, cães, bolsas e caixas. Eu acho.

Que o Brasil colonial, de estado insuficiente de civilidade, não está preparado para homens e mulheres pretos/as em posições de poder, é fato. Que, justamente por esse estado grave de insuficiente civilidade, não estamos em condições de perder oportunidades de boas discussões, é outra verdade. A terceira verdade é que não tenho mais idade pra cair na esparrela de sair do meu próprio lugar de fala. "Que é qual, binha?" Nesse caso, perguntar por querer entender posturas de quem convoca a todos/as nós, sem restrições de etnia, gênero ou lugar social. Tamos juntos/as nas pazes, nas tretas e se você é do tipo que já pensa que concordar comigo é repetir "agora tudo é racismo", senta lá, Cláudia. Não sou da sua laia. Porque é. Tudo é racismo, não só agora. No Brasil, desde 1500, inclusive. Mas, sobre isso, tem quem fale com muito mais propriedade. Aqui, é outro papo.

Pode criticar Djamila, sim, porque ela é uma militante de grande visibilidade que tomou uma atitude inegavelmente controversa. Só que dá pra sair da quinta série, nessa conversa, discutir conteúdo, e não se você vai ou não com a cara, se é fã ou não da protagonista do fato. Esquece a pessoa, vamos à figura pública, à que se oferece para aplausos e vaias porque é assim com qualquer um/a que se superexpõe. O que se espera é que essa superexposição traga, junto, a capacidade de lidar com a resposta do público, exatamente o que faço aqui. Público. É esse o meu lugar.

Vaca fria: sabemos que, no mundo da moda, grandes marcas passaram a convidar militantes para os holofotes. Holofotes, observe. O que é muito diferente de real protagonismo. No conteúdo, cérebro, cerne, comando, criação, não sei se algo mudou. Mas estão lá os/as militantes na vitrine, e por qual motivo? Porque as marcas são aliadas das boas causas? Porque descobriram, repentinamente, a beleza negra? Porque passaram a achar corpos gordos lindos? Porque entenderam que mulheres não são obrigadas a se depilar? Porque agora acham mulheres velhas incríveis?

Não. O setor entendeu que precisa da diversidade pra ganhar (mais) dinheiro. Óbvio que pressionar o mercado é - também - o que os movimentos querem e que convites como esse que Djamila recebeu são a prova da força desses movimentos. Isso é sucesso coletivo, resultado de trabalho dela, dos/as outros/as que estão aqui e de muitos/as ancestrais. Longe de ser apenas mérito individual, é vitória e ocupação, sob determinado ponto de vista. Início de reparação histórica, rendição (relativa) do mercado à justa luta e pressão. Mas, também, "captura pela elite", para alguns, porque os pontos de vista são vários.

Eu não sei se acho certo ou errado que Djamila tenha participado da campanha da marca que sofreu acusações de racismo, inclusive pouquíssimo importa meu "sim" ou "não". Há nuances em ocupações. Ganhar territórios é essencial, há necessidades pessoais e coletivas (legítimas) de validação. Por outro lado, nesse caso, me parece uma grande contradição. Fato é que é uma discussão riquíssima que extrapola essa mulher e essa marca, que fala do lugar da militância e dos movimentos, dos cantos de tantas sereias e dos lugares à mesa que estão reservados para esses/as convidados/as "especiais". Basta sentar à mesa? Não sei. Mas o objeto da discussão foi perdido porque permanecemos em um lugar de civilidade e maturidade insuficientes, brincando de "isso ou aquilo" e chamando de discussão. Seguimos. Mas, plenos/as? De modo algum.

(Por que quem criticou tava com inveja?)

(Por que só quem não criticou é antirracista?)

Por achar a discussão importante, me parece frágil que a barreira do "foi inveja racista" esvazie completamente o objeto da crítica. De uma pensadora, se espera pensamentos. Inclusive para uma reflexão coletiva, seria importante que essa teórica falasse sobre o fato e não apenas sobre um suposto sentimento de inveja coletiva ao ver uma mulher preta segurando uma bolsa cara. Né simplista demais não? Eu acho e gostaria de ouvir mais do que algo como "os cães ladram e a caravana passa".

"Quem não quer ser visto não se mostra," também disse Dona Stella, e não se pode escolher o jeito de ser visto/a no esporte radical que é a superexposição. E, afinal, não é palco que se quer? Mas é óbvio que não vou ser besta de dizer que ela "perdeu uma oportunidade" (mas perdeu) de levantar uma grande pauta nacional. Não tô aqui pra ser acusada de querer ensinar pai-nosso a vigário e decidir a militância alheia. Quem sou eu na fila da vacina (aguardando a segunda dose)? E depois, cada pessoa dá o que pode, quando pode, quer e tem. Ela não é obrigada. Mas eu também não. Nem você. Cada um/a no seu próprio lugar de fala. Então, o que eu quero saber é: vale tudo pra ocupar espaços?