Por entre as margens da palavra

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 11 de outubro de 2021 às 05:07

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Conversava esta semana com um amigo sobre A Terceira Margem do Rio – conto e canção. Rosa de um lado, Milton e Caetano do outro. Eles nos vieram meio por acaso, através de um vídeo que vimos, no qual os dois compositores comentam sobre o processo de criação de melodia e letra, enquanto cantam juntos os versos, tentando equilibrar com harmonia tons diferentes. É uma canção linda, que, à luz da história original, torna-se reveladora, como um clarão.

Assim como o meu amigo, eu nunca havia lido o conto, o que fizemos prontamente. Retirei o Primeiras Estórias guardado na estante e me embrenhei nas Gerais de Guimarães. É um assombro. O pai que abandona os filhos e se lança ao rio com sua canoa, para lá viver indefinidamente, sem nunca mais pisar em terra, sem nunca mais trocar palavra. Não fugindo rumo a lugar algum, apenas vivendo dentro do rio, alheio a tempestades e correntezas. Com que propósito?

Os anos escorrendo, as vidas do lado de cá da margem se arrastando, sobrevivendo à ausência. E do lado de lá um tempo sem tempo, insondável. Apenas o filho à espera, como um guardião, conservando a memória e a loucura do pai. “Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.”

Como traduzir tamanho assombro em versos? Como transfigurar prosa caudalosa em poesia represada, quase como tentar aprisionar a imensidão de um rio no diminuto retângulo de um aquário? O fato é que A Terceira Margem do Rio, o conto, está contido em toda a sua magnitude na canção nele inspirada. Até mesmo nas recriações: “o rio-rio-rio, o rio” que se converte em “o rio riu ri”. De quebra, nos vem essa oferenda: “Margem da palavra / Entre as escuras duas / Margens da palavra / Clareira, luz madura / Rosa da palavra / Puro silêncio, nosso pai.”

Permanecemos, eu e meu amigo, absortos na vã tentativa de compreender como se deu essa transposição. Se aos poucos, como a construção de uma canoa, ou abruptamente, feito uma queda d’água. Como foi possível se ombrear com tamanha grandeza, juntando cacos de prosa para com eles gerar um novo rebento feito de poesia? Concluímos que não sabemos da missa a introdução. Por mais que Caetano e Milton esclareçam pontos cegos, ficamos à deriva, como velhos no rio.

No vídeo, cuja origem desconheço (provavelmente trecho de algum programa), Caetano revela: “Quando Milton me mandou a canção, ela já estava pronta. Eu fui apenas um artesão-funcionário do negócio dele. Ele já veio com isso na música, o título, já estava dizendo tudo, aí saiu. E vieram muito do conto do próprio Guimarães e do Grande Sertão”.

Caetano comenta ainda sobre uma carta que Manuel Bandeira escreveu a Rosa (como eram bonitos esses sobrenomes!) a respeito da obra-prima deste: “Finalmente li o Grande Sertão: Veredas. Achei muito bonito. E embora tivessem me dito que você tinha inventado uma língua, o que tinha me entristecido, na verdade o que eu encontrei ali foi a melhor língua portuguesa, e não uma língua inventada”.

Grande Sertão, que me perdoem os devotos de Machado, é nosso maior monumento literário. Nosso Ulisses, nosso Hamlet, nosso Moby Dick, nossos Irmãos Karamazov, nossa Montanha Mágica, nossas páginas repletas de som e fúria, de crime e castigo, de guerra e paz, de vida e destino. Nosso Riobaldo e nossa Diadorim: “Aqui a estória se acabou. Aqui a estória acabada. Aqui a estória acaba”. Naquelas páginas atulhadas de delírio silencioso está a prova inconteste do quanto fomos grandes – e talvez ainda sejamos.