Por entre as vírgulas de André Setaro — cinco anos sem o mestre

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  • Da Redação

Publicado em 10 de julho de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Foto: Aleksandra Pinheiro/Divulgação Para escrever e contar suas histórias, André Setaro não economizava nas vírgulas e, entre elas, transpareciam detalhes de suas ideias e o seu jeito de ser. Desde que se entendeu por gente, o filho de Dona Luisa passava horas e horas dentro das salas dos cinemas de rua, flanando a pé de um a outro pelos caminhos da Bahia de seus tempos.

Jovem a partir dos anos 60, em plena efervescência cultural e existencial do período que ele gostava de comparar ao Século de Péricles, o menino André foi tomado por um turbilhão de paixões que tumultuavam suas emoções.

Mas naqueles anos dourados e rebeldes, enfurnado numa sala de cinema, André Setaro conseguiu viver realmente o espírito daquele tempo?

Era o auge da beatlemania, que enlouquecia de primeira a quem batia os ouvidos naquela sonoridade que parecia ter vindo de outro planeta. Enquanto isso, o ginasial André ouvia orquestrações de trilha sonora dentro de uma sala escura.

É um boko-moko mesmo.

Durante a época de ouro do nosso futebol, com craques em todas as equipes, resultando na formação dos escretes que fizeram o Brasil vencer três das quatro Copas do Mundo que disputou no período, o sedentário Setaro não trocava a poltrona do Cine Guarani pela arquibancada da velha Fonte Nova.

Eis um chato de galocha.

No epicentro do terremoto político que convulsionou o país, levando à luta desesperada jovens que se doaram de maneira alucinadamente corajosa, ele nem sequer atendeu aos convites que recebeu para frequentar aparelhos?

Só pode ser alienado!

Mas é preciso calma para falar de André Setaro. A mesma que ele teria para detonar essas provocações. Ele não trocou uma paixão pelas outras. Ao contrário, entre as suas vírgulas, estavam lá todas elas.

Não foi grudado numa jukebox, mas dentro da sala escura com uma tela brilhante, que a febre da beatlemania esquentou sua adolescência. Assistindo A Hard Day’s Night no meio de uma plateia ensandecida pelos reis do iê, iê, iê, o adolescente André vibrou até com o barulho do público, que reagia em total sinergia com o que via na tela.

Era na poltrona do cinema, e não na geral, arquibancada, cadeira ou no xaréu que o orgulhoso levantador de copos André Setaro conhecia o que de melhor havia nos gramados tupiniquins. O obrigatório cinejornal Canal 100 foi palco majestoso para o futebol brasileiro desfilar em ângulos e closes que deram um tom renascentista aos lances dos nossos maiores craques, sempre ao som marcante de Na cadência do Samba. Por conta disso, e só dessa vez, sabia os nomes dos jogadores que foram a campo na Copa e pôde assistir com sua turma o tri de 70, sonhando em transformar a Jules Rimet numa tulipa de chopp na hora da comemoração.

E quanto à política dos rebeldes anos de chumbo? Época de filmes como A Batalha de Argel, Soy Cuba, Terra em Transe, A Chinesa, ou ainda os vários de Costa-Gavras. Ah, já sei, ele assistiu a todos esses no cinema. Sim, assistiu, mas não é só isso.

Em 1971, estudantes da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, André e seus colegas fizeram um enorme esforço para conseguir trazer a Salvador, por avião, as latas com uma cópia de Cidadão Kane, seu filme preferido.

Para exibi-lo na faculdade, precisariam que a obra estivesse liberada pela censura federal e, ainda assim, que recebesse o aval da direção da unidade. Um simples não do diretor, ou a falta do certificado de censura, jogaria por terra o trabalho que fizeram por meio do diretório acadêmico para arrecadar o dinheiro e concretizar a aventura.

Então, para não serem derrotados pela burocracia autoritária, exibiram o filme em sessão para os alunos, sem consulta à direção. O problema é que nessa época as universidades brasileiras eram um campo minado de arapongas infiltrados, disfarçados de alunos. A ditadura identificava os estudantes como potenciais adversários do regime, drenando agentes e recursos públicos para persegui-los.

Não se sabe ao certo, mas foi provavelmente algum destes arapongas que acionou a Polícia Federal. O camburão da PF entrou no campus do Canela e os agentes foram logo perguntando quem era o responsável por aquela sessão. Setaro não era o único, mas se acusou sozinho, sendo levado imediatamente para dar um divertido rolé com os simpáticos defensores da segurança nacional.

Por conta da prisão, o imberbe André Setaro foi obrigado a dar sua primeira aula de cinema, explicando o tão necessário específico fílmico ao delegado, que não estava interessado no tema.

— Você é comunista?

O cinéfilo subversivo negou.

— Estudante é tudo comunista!

O chefe da PF bradou. Injuriado com o caso, acusou a tudo e a todos de estarem a serviço de Moscou, incluindo o diretor do filme, que era também o ator principal.

— Delegado, o senhor sabe quem é Orson Welles?

O temido federal não sabia e se enfureceu com a pergunta. O jovem André encarou a repressão a seu modo, evidenciando a ignorância enciclopédica dos criminosos de estado.

Um homem e suas circunstâncias

Em Setaro, não eram só as vírgulas que tinham função essencial: o silêncio também. Sua fala era pausada e suas pausas valiam como falas. Seu timing era desconcertante. Os gestos lentos, quase coreografados, compunham a mise-en-scène. O indefectível avatar formado por óculos escuros, barba branca e calça jeans realçava seu carisma. Mas a marca de sua personalidade idiossincrática pode ser melhor definida pelo jeito sarcástico e afável, uma combinação raríssima.

O cigarro foi seu enfumaçado melhor amigo. Amizade que cabia no bolso da camisa, mas que ele já teve que esconder na meia para que o estoque não fosse comprometido pelos mais diversos pedidos. A cerveja, selo de qualidade de sua boemia, era bebida sempre aos montes de garrafas, estivesse ou não acompanhado.

“Sem beber a vida não vale a pena”, dizia.

A paixão eterna por Brigitte Bardot foi maior até do que o tesão por Kim Novak, Catherine Deneuve e Helena Ignez. Crítico feroz do casamento, casou-se três vezes e ainda pediu a mão de outras tantas moças.

Mas o nó górdio de André Setaro estava em seu caprichoso temperamento, sempre contraditório. Se tinha azul, ele queria verde. Se tinha verde, ele queria azul. Nadava contra a corrente em grandes temas e também em questões corriqueiras. Costumava chegar aos seus compromissos com uma antecedência que nem os britânicos recomendam, o que lhe fazia esperar sozinho, por um bom tempo, pelos atrasados de sempre.

Jamais se enganou com ouro de tolo. Formado em Direito, trabalhou na área jurídica de uma grande empreiteira e pegava carona com o próprio dono, mas aquilo não era pra ele. Para o horror de alguns familiares, não viraria o engravatado que planejavam. Persistiu em seu propósito, mesmo sem saber bem qual era exatamente, enquanto ia se tornando demasiadamente André Setaro.

A grandeza de sua extrema simplicidade não fez distinções entre capitães de areia e doutores. Por conta de seu jeito agregador, amizades foram feitas entre os que estavam ao seu redor, e que possivelmente não teriam jamais outro elo que não ele. A ironia e o bom humor foram sua reação natural ao mundo. Ria e fazia os outros rirem dele mesmo. Tragicômico, brincava com a própria sorte.

“Sou uma bomba-relógio”, divertia-se, sem mudar os hábitos.

Quando esteve internado, depois de um enfarte, seu quarto era tão frequentado que parecia o de Glauber Rocha. Foi um entra e sai de amigos que extrapolava a privacidade do paciente naquele cativeiro. Mas ele não reclamava e, mesmo preso à cama, fazia sala para harmonizar visitantes tão diferentes que sentiam-se deslocados no pequeno espaço do quarto.

Superou as mais catastróficas previsões a seu respeito, dançando na corda bamba sem dar a mínima para a morte. Mas, nos últimos tempos, já não se incomodava que ela o beijasse. André Setaro fazia bem ao mundo, mas o mundo não lhe fazia mais tão bem. Era adorado por muitos, mas isso não era o bastante.

“Não é a mesma coisa”, dizia ele, comparando o calor de seus afetos.

Por mais que tivesse os de hoje, era os de outrora que queria. O bonde que ele desejava e sonhava já havia passado. Para nós, ao contrário, ele era o bonde que não podíamos deixar passar.

O Cinema, quem diria, já lhe aborrecia. Se estivesse começando a carreira agora, dizia que não se dedicaria à sétima arte. Se fosse jovem neste século XXI, colocaria uma mochila nas costas e sairia por aí.

Como em seu filme preferido, Cidadão Kane, ele tinha o seu Rosebud, mas não materializado em um objeto, e sim pairando em sua nostalgia permanente.

O bar Avalanche, na João das Botas, o mais marcante dos seus tempos de estudante de Direito. O cheiro de ar condicionado do Cine Guarani, a casa de chá da loja Duas Américas, o medo que sentia do Edifício Sulacap, o pé de jambo que gostava de assaltar, a banca de Seu Paranhos, as revistas em quadrinhos trocadas na porta do cinema Casa de Santo Antônio.

Ou a imperícia automobilística que lhe custou um carro. A namorada que levou um fora porque não soube apreciar Cidadão Kane. As 48 horas seguidas que passou bebendo com um amigo, em uma competição etílica que terminou empatada. O armazém da esquina, a que ia sozinho mesmo ainda menino de calça curta. A morte do pai, que o fez se mudar para Salvador. As idas com a mãe à central telefônica pra ligar para o Rio. A casa em Nazaré, a amendoeira do bairro. A farra no cordão de carnaval Os Filhos da Puta, os espetáculos nas Escolas de Teatro e de Dança, no Vila Velha e no Teatro Castro Alves. A porta da livraria Civilização Brasileira. Os tempos de coroinha do Padre Lemos, que lhe fizeram decorar termos em latim. O velho vendedor de fotogramas que admirava.

As aulas de sábado no Colégio Central, filadas para ir ao Guarani, com o Bar Cacique ao lado. E o Tabaris, que nunca conseguiu entrar. A rua sem carros que virava campo para a meninada jogar bola, seus frágeis dedos de criança controlando a pipa colorida e tão bonita de ver no céu, os babas batidos no terreno baldio, os bondes vermelhos em que pongou. Andar, andar e andar conversando com os camaradas e espiando as meninas do Convento do Sagrado Coração de Jesus.

A chuva que pegou no Rio, e se transformou em febre, só para ver um filme, na mesma época em que não deixou o bonde da história passar e participou da belíssima Passeata dos 100 mil. O pedido de demissão da repartição pública depois de assistir um filme de Antonioni. O encontro com James Stewart no Rio de Janeiro, com Roman Polansky e Jack Nicholson no Hotel da Bahia, com Werner Herzog no ICBA e a cantoria com Catherine Deneuve, quando fizeram um breve dueto do tema de Os Guarda-Chuvas do Amor. As aulas e o Clube de Cinema do mestre Walter da Silveira, o assombro com as imagens dentro da sala escura, o deslumbramento com a vida quando ela lhe era permanente novidade.

São muitas histórias! As que vivemos com ele, as que ele contou, as que inventou, as que nem desconfiamos que existiram e as que ainda queríamos que acontecessem.

Ele se foi, mas não é preciso se despedir. Quem teve a sorte de ser amigo de André Setaro sabe que vamos nos lembrar e falar dele por toda a vida.

*Lucas Fróes foi aluno e amigo de André Setaro.

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