Primeira escritora negra vencedora do Prêmio Camões grava filme em Salvador

No documentário, Paulina Chiziane troca cartas com a brasileira Elisa Lucinda e a portuguesa Raquel Lima

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 8 de julho de 2022 às 09:50

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Paula Fróes/CORREIO
Elisa Lucinda dá depoimento para o filme por Foto: Divulgação

Não é incorreto dizer que a Bahia atraiu Paulina Chiziane. Primeira mulher a escrever um romance em Moçambique e primeira negra a vencer o Prêmio Camões de Literatura, a escritora moçambicana está gravando o filme 'Cartas Para...' junto à amiga Elisa Lucinda e à jovem escritora Raquel Lima. 

Dirigido pela baiana Vânia Lima, o filme propõe uma ponte entre Brasil, Moçambique e Portugal por meio de cartas trocadas entre elas sobre experiências, desafios e inquietações.

A ideia era gravar entre cidades como Maputo, Lisboa, Porto e Coimbra. No Brasil, o plano incluía o estado do Espírito Santo - terra natal de Elisa - e Rio de Janeiro. Mas a Bahia acabou chamando, tudo conspirou a favor, e o final do filme está sendo rodado entre Salvador e Lauro de Freitas. Ontem, a equipe esteve no Museu de Arte Moderna da Bahia, na Contorno. Bastidores da gravação do filme, previsto para ser lançado em 2023 (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Convidada de honra do governo de Portugal para participar da Bienal do Livro de São Paulo - que termina domingo -, Paulina já havia manifestado o desejo de sua assistente, Firmina, em conhecer a Bahia. Sair de Moçambique para Salvador seria muito caro, mas o convite para o evento paulista mudou o cenário.

“Sinceramente, não programei vir aqui, mas a Firmina, a menina que me acompanha sempre, teve o desejo de vir ao Brasil e o Brasil, pra ela, é a Bahia”, explica. 

E completa: “Nesta manhã, viemos aqui ao Museu e vi muitas coisas, o sagrado africano dentro dos espaços deste museu. Peças provenientes da África e feitas aqui por artistas da Bahia. Algumas me fazem lembrar minha terra, há coisas muito semelhantes. A primeira das quais é a natureza”.

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Trocas afetivas Foi a segunda vez da escritora na Bahia: ela participou da Festa Literária de Cachoeira – Flica, em 2017, quando conheceu Vânia e Elisa. “Recebi a carta da Elisa Lucinda e escrevi para a Raquel Lima, uma escritora  que não conhecia. Tive a sorte de ir a Portugal encontrar com ela e foi momento muito emocionante. Ela conhecia meu trabalho, mas o dela eu não conhecia porque é uma jovem”.

Paulina conta que o encontro com a portuguesa foi muito emocionante. “Escrevi a carta para ela, falando de nossos sentimentos, nossos sonhos e como a nossa arte de escrever pode contribuir para quebrar silêncios e dizer verdades profundas que estão dentro de nós”, conta Paulina, dividindo o olhar entre o mar da Baía de Todos- os-Santos ao fundo da sala e as peças da exposição do Acervo da Laje no MAM.

Dividido em três atos, o documentário é movido pela inquietação: “O que as mulheres têm a dizer ao mundo?”, caminho que a diretora e roteirista Vânia Lima costura através de três temas: voz, corpo e tempo. “As cartas conduzem a narrativa e a cada leitura/escrita mergulhamos em camadas destas mulheres e nos apaixonamos por suas jornadas e lutas, também viajamos do Brasil a Portugal, de Portugal a Moçambique, e retornamos em novos ciclos, com imagens que aproximam esses países e suas histórias que estão diretamente ligadas ao idioma que falamos”, explica. Vânia Lima é diretora do filme, que começou a tomar forma em 2017, mas foi interrompido pela pandemia do coronavírus (Foto: Paula Fróes/CORREIO) O filme é uma realização da Lima Comunicação, produtora que integra o Grupo audiovisual Têm Dendê, com distribuição da Lança Filmes e conta com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) da Ancine, por meio do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE). Am previsão de lançamento é em 2023.

Não é prêmio pra preto O trabalho de Paulina Chiziane passou por cima de muitos preconceitos históricos antes de ser reconhecida - em seu país e fora dele. A começar por seu primeiro romance, Balada de Amor ao Vento (1990), o primeiro publicado por uma mulher em seu país natal. O fato do prêmio Camões demorar 33 edições para premiar uma mulher negra fez com que essa premiação nunca tivesse sido um sonho ou objetivo para a escritora.

“Sempre soube que existia e nunca fez parte dos meus horizontes. Essa é a 33ª edição do prêmio e foi a primeira vez que uma pessoa da raça negra, banto e mulher vence. As 32 anteriores foram brancos e homens. Umas 6 mulheres. Os negros que ganharam são mulatos, africanos com mistura de sangue com o branco. Sempre olhei para esse prêmio e dizia pra mim mesma ‘este não é prêmio pra pretos’”, afirmou.

Paulina encarou a premiação como uma oportunidade de aumentar o tom de voz e pensou que poderia ser algum sinal de mudança - apesar de dizer, com voz cheia de sinceridade, não ter tanta certeza disso. E aproveitou a janela como um momento de autoafirmação, mostrando que o trabalho de pessoas negras têm valor e questionando o porquê de demorar quase três décadas e meia até que uma escritora negra pudesse ser premiada. “Gostaria de entender um pouco mais o que aconteceu, qual a razão de durante todo esse tempo nunca ter aparecido ninguém com pele negra vencendo e qual foi a razão desta mudança. Será que não havia nenhum negro que soubesse português? São questões sem resposta”, ironiza.  Os olhos atentos e azuis da escritora moçambicana fitam o horizonte durante entrevista (Foto: Paula Fróes/CORREIO) A escritora sonha com um mundo melhor e mais justo. Um mundo em que as pessoas enxerguem seu cabelo como bom e que os sonhos não morram. Inclusive, os sonhos são a única coisa que ela acredita ser eterna.“Eu acho que sonhar é a única coisa que não morre. Não, não. O sonhar não morre. O sonhar com um futuro, uma mudança, vai nos acompanhar até o fim dos nossos dias. Em prêmio, nada me enche os olhos. Meu sonho é em relação à vida, humanidade”, disse. O mundo dos sonhos de Paulina passa por um ambiente em que não apenas os colonizados tomem consciência de suas vozes, corpos e tempos, mas também que os colonizadores mudem suas mentalidades para que haja justiça e vozes como a dela ecoem e, por que não, também sejam premiadas?