Procissão dos Fogaréus

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às sextas-feiras

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  • Nelson Cadena

Publicado em 19 de abril de 2019 às 05:00

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Durante mais de dois séculos e meio, Salvador realizou a Procissão dos Fogaréus, uma espetaculosa encenação de rua - auto teatral - que reunia milhares de pessoas. A  organização era prerrogativa das Santas Casas de Misericórdia em todo o mundo lusitano. Sabe-se que já era realizada em 1618 e deixou de existir oficialmente em 1873 por ato do arcebispo da Bahia, de comum acordo com o provedor da Santa Casa, doravante substituída pelo cerimonial dos lava-pés, na mesma Quinta-Feira Santa de endoenças.

O Gato da Misericórdia era o protagonista principal da procissão, conforme os relatos que nos foram legados por Manoel Querino e Silva Campos, esse último com maior riqueza de detalhes. Era um personagem sinistro, grande e forte, supõe-se que embaixo do grosso camisolão  roxo e o capuz escondia-se um negro de Intendência, assim denominados os africanos que ascendiam os candeeiros, à base de azeite de baleia, da iluminação pública. O Gato tinha de ser alto e forte pois o seu papel principal no auto de rua era apanhar durante todo o percurso.

A procissão dos fogaréus dramatizava a marcha dos soldados do Pretório até o Horto das Oliveiras, junto com o Judas Iscariote, a fim de efetuarem a prisão de Jesus. O temido Gato representava, provavelmente,  o discípulo traidor, fazia a sua aparição por volta das 19 horas, após a representação da última ceia no interior da igreja da Misericórdia. Do lado de fora, uma multidão aguardava o início do cortejo que deveria percorrer todo o Centro Histórico com paradas e entradas em algumas igrejas do percurso. Escravos e negros de Intendência  portavam fogaréus com a sua fumaça preta e fedorenta que os fiéis suportavam no interior dos templos.

De repente, o Gato fazia a sua espetaculosa aparição, portando uma matraca, o ruge-ruge, e miando, produzindo um som rouco e estrambólico, assustador. O povo não lhe perdoava a intromissão e batia nele, beliscando-o e com sopapos durante todo o percurso. Vários soldados em volta “protegiam” a sua integridade física por conta dos arroubos de alguns fiéis que, não satisfeitos em bater,  lhe jogavam pedras. Um jornal, em 1871, denunciou os excessos, noticiou a pedrada que feriu um sargento da polícia em frente à Igreja de São Francisco, denominou a procissão “de anarquia indescritível” e sugeriu a sua extinção. O jornal Crônica Religiosa ponderou que a medida sugerida, se levada a efeito, colocaria em risco a participação popular durante a Semana Santa.

No seu infame papel de apanhar, e a despeito disso, o Gato da Misericórdia era o principal personagem da festa. A sua matraca sinalizava as paradas e as performances do cortejo, marcadas pelo som de um fagote com o seu timbre melancólico, atrás vinha uma orquestra e, em outra fila, destacavam-se do grupo os soldados romanos xingados pelo povo e vaiados aos gritos de judeus! judeus! judeus! O Gato  tanto apanhou que as pedras jogadas contra ele aumentaram de tamanho e, com o passar dos anos,  registraram-se incidentes que feriram populares e mesmo autoridades. Foi o momento da rendição. O provedor da Santa Casa, uma entidade leiga, mas naquele tempo com forte influência cristã, entendeu-se com o arcebispo e uma portaria pôs fim ao evento.

Não sabemos como o povo reagiu à proibição dos Fogaréus em Salvador, ainda hoje uma forte tradição em várias cidades brasileiras. Na Bahia,  o município de Serrinha é um exemplo disso. Não há notícias de que em qualquer lugar do Brasil o sinistro Gato da Misericórdia tenha permanecido como elemento principal dos cortejos.