Quadrinhos denunciam abusos sofridos por empregadas domésticas na pandemia

HQ 'Confinada', de Leandro Assis e Triscila e Oliveira, mostra que 'é possível ser um good-vibes racista'

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 10 de abril de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Fran, a patroa. Ju, a empregada. Fran, branca. Ju, negra. Fran, centro. Ju, periferia. O abismo social entre elas é o condutor da história em quadrinhos (HQ) 'Confinada', assinada pelo roteirista e quadrinista Leandro Assis e a escritora e ativista Triscila Oliveira. A pandemia é a ambientação da história que escancara a distância entre Fran e Ju e o que ela pode revelar sobre a elite – e a sociedade – brasileira. A obra, cujo último capítulo foi publicado na última semana, é feita a quatro mãos por Leandro, que vive em Portugal, que desenha as tiras, e Triscila, no Rio de Janeiro. A inspiração vem de histórias vividas ou ouvidas por eles. A própria Triscila já trabalhou como empregada doméstica na juventude e é filha e sobrinha de empregadas domésticas.“A inspiração vem da História do Brasil, de uma realidade de todos os dias”, conta Triscila.Publicadas desde abril do ano passado no Instagram de Leandro Assis (@leandro_assis_ilustra), as tiras de quadrinhos chegam a ter mais de 210 mil curtidas. Comentários, há até milhares. A história das personagens principais, Fran e Ju, surgiu como uma espécie de subproduto de outra série criada por Leandro, depois com coautoria de Triscila, 'Os Santos', que também mostra as entranhas da elite brasileira.

Leia a reportagem principal: Empregadas são obrigadas a ficar na casa dos patrões 'enquanto a pandemia durar'

Quando começou a pandemia, surgiu a ideia de pausar 'Os Santos' – que voltou a ser produzida com o fim de 'Confinada' – e publicar uma narrativa que focasse na dicotomia entre patrões e empregadas para falar sobre a elite.

Em uma das tiras, Fran corta em 50% o salário de duas empregadas, Dinah e Marli, que não aceitam passar toda a pandemia na casa dela, como têm acontecido a outras empregadas domésticas. “Vimos que conseguiríamos falar muito sobre essa elite a partir da relação desumana que às vezes existe com empregadas domésticas. Esse é um relançamento que pode desmascarar a hipocrisia”, acredita Leandro.Relatos Aos poucos, os autores começaram a receber relatos de empregadas domésticas que se viam retratadas em cada tira publicada. Alguns dos depoimentos que apareceram eram de mulheres pressionadas pelos patrões para ficar de quarentena, enquanto a pandemia durasse, na casa deles. A parceria de Leandro e Triscila surgiu depois que ela deixou um relato na tirinha 6 de 'Os Santos'. Depois de ler o depoimento, Leandro entrou em contato com Triscila. Ele, vindo de uma família de classe média carioca, buscava alguém que tivesse propriedade para falar sobre empregadas domésticas. A colaboração dos dois é feita à distância.

As tirinhas mostram situações do cotidiano da relação entre Fran e as empregadas domésticas. Em outra tirinha, Ju aparece de máscara, servindo bebidas para Fran, uma influenciadora digital, e seus amigos – essa é a ilustração que aparece na capa da edição impressa deste final de semana do CORREIO.

Leandro consegue enxergar claramente situações presenciadas por ele, ao longo da vida, na casa de parentes e amigos. Triscila observa uma realidade de exploração e preconceito que conhece de perto. Confinada mostra a elite brasileira – ambientada nos bairros da zona sul carioca – nos exageros e sutilezas.   Não se mira apenas numa elite tipicamente conservadora, mas também naquela que se autointitula progressista.“É possível ser um good-vibes racista. Eu diria que Fran até estaria aberta a algumas pautas, mas é uma mulher que se sente no direito de exercer todos os privilégios”, diz Leandro. Com isso, a dupla não quer dizer que não exista trabalho doméstico dentro dos parâmetros da lei, e com relações humanitárias. Mas, que é preciso repensar o que a precarização dessas relações trabalhistas revelam sobre nós mesmos.  Um caminho pela frente As tirinhas passaram a circular e não só mais as empregadas domésticas lotavam a caixa de mensagens online de Leandro e Triscila. Para Leandro, começaram a chegar relatos de patrões que começaram a repensar as próprias relações com as empregadas que ocupam um papel central na vida doméstica.

Um amigo de Leandro chegou a relatar que conhecia empresários do mercado financeiro que sempre comentavam a série, problematizando o que ela revelava da vivência dentro de suas casas. “Confesso que não esperava, mas surgiu”, afirma Leandro.

A série 'Confinada' ganha eco num momento em que foram colocados pontos de interrogações sobre as relações envolvidas nos empregos domésticos. Esse debate ganhou força pela pandemia, claro, mas também depois de junho de 2020, quando Miguel, filho da empregada doméstica Mirtes, caiu no 9º andar de um prédio de luxo em Recife e morreu. Mirtes acreditava que a patroa, Sari, cuidava do menino.

Triscila ainda não consegue ver com otimismo o presente e o futuro das relações que aparecem em 'Confinada' ou em 'Os Santos', atravessadas por gênero e raça. Ainda hoje, por exemplo, ela, uma mulher negra, diz que há quem ignore sua presença na criação das séries.