Quando dez anos pareciam um século

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  • Kátia Borges

Publicado em 29 de janeiro de 2022 às 05:10

- Atualizado há um ano

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“Se fosse possível preservar determinado período da sua vida para sempre, qual época você escolheria?”. Me veio com essa o colega Paulo Sales, jornalista e cronista que também escreve nesse espaço. Comentei com ele, brincando, que passaria dias e dias pensando numa resposta. Não menti. Eis-me aqui ainda às voltas com a pergunta.

Lembro duma rua que eu atravessava a pé até a escola todas as manhãs. Aquele era um tempo bom, de teto seco e ilusão de mudança. Até minha mãe parecia feliz, embora ainda pairassem sobre nós algumas nebulosas. Do primeiro andar do sobrado, observava, por detrás das cortinas, hordas ruidosas de jovens se juntando como fantasmas.

Embora sem raça definida, o meu cachorro Nick também não se misturava com Chang, o pobre Pastor Alemão abandonado pelos donos numa jaula que ficava no quintal dos fundos da casa que alugamos. Também iríamos embora dali, dentro em pouco, abandonando aquele breve sonho de família feliz de comercial de margarina.

Hoje percebo que não prestava suficiente atenção a nada que não estivesse em um livro, como se aquele presente/passado fosse apenas uma antessala da verdadeira ação que viria no próximo capítulo. Talvez fosse nisso que eu pensava enquanto caminhava, certa de haver tempo para ser algo além de uma menina melancólica a caminho da escola.

Aquela rua salpicada de folhas secas que desabavam num outono sem fim era um portal entre quem fui e essa outra que hoje anda cinquenta minutos todos os dias por recomendação médica, mesmo sabendo que só a sorte, em meio a uma pandemia, pode garantir um pouco mais de tempo para escrever, e isso é tudo que importa.

Quando dez anos pareciam um século, não me consolava olhar o calendário e conferir as datas festivas que o tédio tornaria infindáveis, as estações do ano que se repetiriam, os aniversários dos amigos, as efemérides. Tudo parecia apenas seguir, andar, dali em diante, em uma experimentação que oscilava entre cotidiano e catástrofe.

Era bom existir, bem ali, na fenda temporal de uma meninice que já beirava a juventude, que era assim feito um filme de Sessão da Tarde. Uma rua que se alonga indefinidamente dentro da memória, até um onde no qual tanto se pode virar um adulto sociável e saudável quanto desaparecer, rebelde e indomável, ao dobrar a esquina.