Quando nem a tragédia serve como lição

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  • Da Redação

Publicado em 11 de maio de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Entre as cerca de 11 mil mortes por Covid-19 no Brasil, está a de Jorge Luiz Domingos. Jorginho, como era conhecido por todos, era o funcionário mais antigo do Flamengo carioca. Há uma semana, Jorginho, aos 68 anos, engrossou as estatísticas da doença.

A morte chegando ao seio do futebol não serviu, no entanto, para que o fingimento que subestima o perigo oferecesse uma trégua. Ironicamente, a despedida de Jorginho ocorreu no mesmo dia em que alguns clubes retomaram parte das atividades, enquanto outros tantos cedem e fazem coro aos apelos da CBF, emissoras e patrocinadores.

O discurso “e daí” trata da real questão da deterioração financeira de empresas, clubes, atletas e, principalmente, funcionários, os mais vulneráveis da cadeia, sem contar dos tantos outros que circulam no entorno do esporte.

A preocupação com o bolso é válida, por certo. O que não é válido, no entanto, é tratar a questão econômica como elemento independente da pandemia. A crise econômica é consequência da crise sanitária, e prolongar os efeitos desta última sangrar ainda mais a economia. A Suécia testou a política do “e daí”, causando mais mortes, mas com a mesma queda no PIB, do que outros países escandinavos que adotaram medidas de controle.

O modelo sueco, imitado por tantos mundo afora, evidencia que ignorar a doença em nome da economia é tão somente sacramentar a morte de tantos, numa roleta-russa perversa. Na toada da ignorância, enquanto os países que se fecharam começam a reabrir suas portas, aqui vamos empurrando com a barriga, estendendo a crise que é, sobretudo, moral e civilizatória.

Mas se as comprovações factuais do lado de fora da fronteira não são compreensíveis à limitação de cá, se as mortes que se amontoam em caos sanitário não provocam simpatia, nem se as valas comuns são capazes de criar a imagem forte o suficiente para abrir os olhos, a morte no coração do futebol não serviria de lição, adiando-se e cancelando-se campeonatos em nome da vida? Deveria, mas temos enraizado o Brasil de casa grande e senzala.

Quem morreu foi Jorginho. Massagista. Negro. Pobre. Aos olhos da elite, com seus ternos e cheques, Jorginho é alguém morrível. Afinal, negro e pobre sai de casa sem a certeza da volta, tem a morte circundando e dobrando a esquina à espera da fatalidade. Para os tais, dando-se de ombros, morreu quem “podia morrer”. Só mais um, e daí?

E assim seguem, indiferentes, os que se despem de humanidade solicitando o retorno do futebol, dando as costas à massa que sucumbe na crise, abandono tão bem representado no deserto insípido das futuras arquibancadas desalmadas.

Se na Roma antiga o pão e circo era instrumento de controle, distorcemos tudo no presente. Do pão temos somente o discurso, sem ser provido com a velocidade e a abrangência necessárias a quem necessita; do circo, clama-se por um espetáculo patético, torto, decadente, sem vida. O futebol, enquanto entidade e identidade nacional, não merece quem o rege.

Torce-se, pois, pela ilusão da normalidade, que poderá fazer a canção de Aldir Blanc, também vítima da Covid-19, ganhar contornos de realidade macabra, em simulacros de Jorginhos ainda mais excluídos, sem direito a nome e sobrenome: “tá lá um corpo estendido no chão, em vez de um rosto, uma foto de um gol”. Mas, olhe, é um gol do seu time! Não era bom quando a gente cantava isso?

Gabriel Galo é escritor .