Quando o silêncio fala: mais de um mês após mortes, mistério continua em Maragojipe

Mas decisão da Justiça indica que casal de amigos é considerado suspeito

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  • Thais Borges

Publicado em 30 de setembro de 2018 às 05:40

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Reprodução/CORREIO

No alto da ladeira do Oteiro, localidade do povoado de Nagé, em Maragojipe, o imóvel de fachada de azulejos marrons é o único que não está habitado. Desde meados de agosto, a casa onde a marisqueira Adriane Ribeiro Santos, 23 anos, vivia com o marido e as duas filhas está fechada. 

Entre os dias 30 de julho e 13 de agosto, foram três mortes na família. Primeiro, a filha mais velha: Gleysse Kelly Santos da Conceição, 5 anos, morreu na segunda-feira, 30 de julho. Na segunda-feira da semana seguinte, Ruteh Santos da Conceição, 2, também faleceu. Exatamente uma semana depois, a própria Adriane morreu depois de passar mal. Até o cachorro da família, chamado de Jack, morreu. Depois de três mortes trágicas, o marido e pai das meninas, Jeferson, saiu da própria casa e foi passar um tempo com a irmã, no centro de Maragojipe.

Em Nagé, restaram o mistério e o silêncio. No Oteiro, ninguém sabe o que pode ter causado as mortes, embora uma das suspeitas é de que as três tenham sido vítimas de envenenamento. E ninguém fala – a própria família se fechou. A mãe de Adriane, dona Rosa, e as irmãs dela, chegam a se esconder da imprensa. A casa onde a família morava fica na localidade de Oteiro (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Os poucos vizinhos que comentam o caso são até repreendidos por outros moradores.“A gente fica sem saber o que aconteceu. Parece que, em um ‘vapt’, de uma hora para outra, tudo mudou”, diz a dona de casa Élia de Almeida, 62, uma das poucas pessoas que aceita conversar com o CORREIO. De frente para a casa da família, do outro lado da rua estreita, a marisqueira Rosália de Souza, 56, explica que, nos primeiros dias, logo após as mortes, foi um entra e sai no Oteiro. Dezenas de pessoas vinham visitar a família; passavam na casa onde Adriane morava. Depois, o fluxo parou. O silêncio imperou. Dona Élia mora na mesma rua em que a família morava. Ela ainda não acredita no que aconteceu (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Rosália recorda o que aconteceu, quando a filha mais velha do casal, Greisse, morreu. Na época, a hipótese era de que ela pudesse ter sido vítima de complicações do diabetes, doença que tinha, segundo vizinhos e conhecidos. “Adriane estava desesperada. Nem falava mais, só ficava triste. Mas ela não imaginava o que estava para acontecer com ela e com a filha mais velha”, diz.

Como a mãe e a maioria das mulheres da comunidade, Adriane também trabalhava com mariscos. “Aqui não tem emprego. O trabalho da gente é isso. Nosso emprego mesmo vem da maré”, completa Rosália. Na terça-feira (25), dia em que o CORREIO esteve em Maragojipe, vizinhos afirmaram que dona Rosa, a mãe de Adriane, tinha ido mariscar.  Jeferson perdeu a esposa, Adriane, e as filhas (Foto: Reprodução) Pescadores e marisqueiras que estavam nos manguezais da região, porém, contaram que ela não tinha ido naquele dia. Mais tarde, quando a reportagem retornou à casa dela algumas horas depois, ela preferiu não dar entrevista. Nem mesmo saiu do quarto.

“Foi um susto muito grande. Coisa que a gente só vê em novela”, diz a marisqueira Neide Santiago, 42, tentando explicar a falta de comentários. Ela também acredita que as três mortes não aconteceram de forma “normal”. “Foi uma coisa muito assustadora a família ter sido destruída dessa forma”.

Busca e apreensão Oficialmente, o delegado responsável pelo caso, Marcos Veloso, titular da Delegacia de Maragojipe, também não comenta o caso. Diz que só vai se pronunciar quando concluir o inquérito. E isso não pode acontecer enquanto o Departamento de Polícia Técnica (DPT) não finalizar os laudos da exumação dos cadáveres da família. Segundo a assessoria do órgão, exames complementares já foram concluídos, mas os laudos ainda não foram finalizados. 

Ainda que a polícia não divulgue novidades sobre o caso, uma decisão publicada no Diário Oficial de Justiça da Bahia da última sexta-feira (28) indica que um casal de amigos de Jeferson e Adriane é considerado suspeito. No documento, o juiz substituto da comarca de Maragojipe, Lucas de Andrade Cerqueira Monteiro, autoriza um mandado de busca e apreensão na casa de na Elisângela Almeida de Oliveira e Valci Boaventura Soares, moradores de Conceição da Feira. 

A decisão foi uma resposta a um pedido da Delegacia de Maragojipe, que apresentou o argumento de que “ali podem estar escondidos resquícios de produtos nocivos à saúde empregados para a prática de homicídios”. Na publicação, o juiz cita que o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) foi contrário ao mandado, por acreditar que a polícia não conseguiu demonstrar que a diligência era imprescindível.  

O texto segue afirmando que, em depoimentos, testemunhas apontaram que Elisângela e Valci estiveram em Maragojipe por alguns dias – justamente o período que coincidiu com as três mortes na cidade, todas sob suspeita de envenenamento. “Constam relatos no sentido de que Elisângela comprou os materiais para a preparação de um chocolate, entregou um chocolate à vítima Adriane e insistiu para que ela o consumisse e que esta foi a última coisa ingerida pela vítima. Momentos mais tarde, a vítima veio a óbito sob suspeita de envenenamento. Há, portanto, indícios de que a requerida possa ter participado de eventual delito de homicídio por meio de envenenamento”, diz a decisão. Para o juiz, a existência de substâncias que poderiam ter provocado a morte da família na casa de Elisângela e Valci era “plausível”. No próprio texto da decisão, o magistrado solicita que a publicação aconteça somente após o cumprimento do mandado, para “resguardar a utilidade da medida”. Segundo fontes ligadas ao CORREIO, o mandado foi cumprido no dia 21 de setembro.

A suspeita sobre esse casal não é recente: há algumas semanas, parentes das vítimas já tinham revelado que acreditavam na possibilidade de os dois terem cometido o crime. Elisângela e Valci teriam conhecido a família através de cultos na igreja que Adriane e Jeferson frequentavam – a Assembleia de Deus de Nagé. 

Entre os moradores, poucos querem comentar a suspeita. Mesmo assim, alguns dizem que o tal casal era o único diferente na cidade. Há cerca de um ano, apareceram por lá. A mulher ficou famosa por fazer bolos por encomenda. “É um tal de fazer bolo, doces de aniversário. Quase que ela fazia um bolo para mim, mas acabou não acontecendo”, conta o dono de um bar de Nagé.  A polícia suspeita que Adriane e as filhas tenham sido vítimas de envenenamento (Foto: Reprodução) Ele diz que era frequente encontrar o casal acompanhado de Adriane e Jeferson. O dono do bar chega até a reproduzir um dos rumores que tomaram conta da cidade nos últimos dias – de que a mulher teria até se entregado à polícia, na presença de dois advogados. A Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP-BA) nega e informa que ela apenas participou de uma acareação com outras pessoas.  “Como é que alguém tem a coragem de tirar a vida de três pessoas? Duas criancinhas e uma mãe jovem. Pessoas que eu vi nascer. É muita crueldade mesmo. E aqui, todo mundo conhece todo mundo. Só esses dois que chegaram assim, de estranho, e ninguém sabe como foi que formou essa amizade”, afirma o homem. A promotora que acompanha o caso, a titular de Maragojipe, Neide Passos, disse que só vai se pronunciar após a conclusão do inquérito policial. O CORREIO tentou entrar em contato com Valci e Elisângela, mas eles não atenderam as ligações. O advogado do casal também não foi localizado. 

Usuário de drogas Na igreja, a mesma coisa. Os membros preferem não entrar em detalhes sobre a possibilidade da participação de Elisângela e Valci nas mortes. O pescador Antônio Carlos Barbosa, 46, que frequenta a congregação e trabalha na portaria do templo, é mais um dos que diz que não sabe como o casal de Conceição da Feira chegou à cidade, nem como se deu a aproximação com Jeferson e Adriane.  Adriane chegava na igreja Assembleia de Deus quando passou mal (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Os dois são membros de uma filial da Assembleia de Deus na cidade onde moram. “Não dá para acreditar que seja isso mesmo. O povo evangélico é assim mesmo: faz amizades e leva para cá, para lá. Mas a gente prefere não falar muito. Quem pode dizer mesmo se foram eles? Só Deus que pode dizer”. 

Ele conta que Adriane chegou primeiro na igreja. Depois, há aproximadamente um ano, foi a vez do marido. “Ele mudou de vez. Deixou o mundo de vez”, diz Antônio Carlos, sem especificar o que significava “o mundo”. E justifica: para ele, Jeferson é um homem de muita fé. 

Em um dado momento, pergunta se a repórter conhece a história de Jó. Na Bíblia, Jó é narrado como um homem que perdeu tudo que tinha – família, riqueza, terras. Mesmo assim, continuou acreditando em Deus. “Ele (Jeferson) é como Jó. Pense num homem de muita fé. Passou por tudo que passou e não desistiu”. 

O pastor da igreja, Wagner França, também contou uma história parecida. Ele próprio chegou à congregação depois de Adriane. Quando se tornou o líder espiritual daquela Assembleia de Deus, há dois anos e quatro meses, ela já estava lá. “O esposo aceitou Jesus através dela”. Ele confirmou que, antes de se converter, Jeferson tinha sido usuário de drogas.   Adriane e Jeferson se casaram na igreja (Foto: Reprodução) Para o pastor, não existe a possibilidade de o crime ter sido uma retaliação por dívida de drogas ou relacionado ao tráfico.“Através dele, muitas pessoas do meio (que usavam drogas) também foram para a igreja. Eu o conheci desde quando ele ainda estava nessa vida e ele sempre teve muito respeito. Ele continua abalado, mas está se recuperando. Esquecer ele não vai nunca”. Sobre Elisângela e Valci, o pastor conta que não tinha acesso a eles nos cultos. Os dois costumavam ir ao templo esporadicamente, sempre na condição de visitantes. “É uma suposição, mas eles não iam frequentemente. É uma igreja com muitos membros. Em um culto de domingo à noite, chega a ter 80 pessoas. Não tem como visualizar todo mundo”.

Foi o pastor Wagner, inclusive, quem socorreu Adriane no dia em que ela morreu. A marisqueira tinha passado o dia se sentindo mal. Mesmo assim, não deixou de ir ao culto daquela segunda-feira, 13 de agosto. Só que, ao chegar, um dos membros pediu que o pastor a levasse à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do centro da cidade. 

“No caminho, ela perguntava: já está chegando? Foram as últimas coisas que me disse”, lembra. Nos dias anteriores, ela andava deprimida. Membros da igreja costumavam fazer visitas à casa dela, se reuniam para alguma oração. “Mas a gente não entrava muito no assunto, para não trazer ainda mais dor. Estávamos ali para levar algum conforto”. Jeferson entrou na igreja por intermédio de Adriane; neste dia, usavam camisas com os dizeres 'Jovem, essa é sua única saída', com alusão ao nome de Jesus (Foto: Reprodução) Pessoas ligadas a Jeferson confirmaram ao CORREIO que ele tinha sido usuário de drogas na juventude, mas que nunca teve envolvimento com o tráfico. Ele teria deixado de usar drogas após sofrer um acidente de moto, em 2011. 

No perfil de Jeferson no Facebook, porém, uma publicação de dois anos atrás faz menção ao símbolo da facção Bonde do Maluco (BDM). Na postagem, um homem carregado uma arma faz o número 3 com as mãos e tem os dizeres ‘Tudo 3!!!’ (sic) escrita em suas costas – os dois gestos são considerados símbolos da facção.  Postagem de 2015 traz símbolos atribuídos ao BDM (Foto: Reprodução) Nos comentários, amigos do jovem comentam frases como “Daquele jeito” e “Não passa nada”, também atribuídas aos membros do BDM. Além disso, em dezenas de fotos antigas, Jeferson aparece fazendo o número 3 com as mãos. Desde o ano passado, porém, a maioria das fotos e postagens são mensagens de líderes espirituais evangélicos. 

Procurados durante toda a semana, nem Jeferson nem seus familiares quiseram dar entrevista. 

Maragojipe tem sido palco de disputa de facções  Se, por muito tempo, o pequeno distrito de Nagé, em Maragojipe, foi sinônimo de tranquilidade, a situação é diferente hoje. A pesca, famosa pelos mariscos, a produção de peças de barro e a agricultura familiar convivem agora com uma faceta que aterroriza moradores: o tráfico de drogas. 

Com apenas 3.261 moradores no último Censo do IBGE, Nagé abriga uma disputa maior do que seu próprio território: duas facções têm levado terror aos moradores dessa e de outras localidades de Maragojipe há pelo menos três anos. Além de ser um tradicional reduto da Katiara, facção que nasceu no bairro de mesmo nome no município de Nazaré das Farinhas e se espalhou pelo Recôncavo, a cidade também tem integrantes do Bonde do Maluco (BDM). 

Em dezembro de 2015, o CORREIO mostrou que a briga entre as quadrilhas atingiu um ponto alto com uma troca de tiros que durou mais de uma hora e envolveu mais de 50 pessoas. Na época, o BDM ainda era ligado à facção Caveira. A briga entre a Katiara e o BDM ficou ainda mais acirrada depois que os líderes de cada uma em Maragojipe foram presos. Assim, ambas queriam ter o domínio do tráfico no local. 

Em 2016, o BDM se separou definitivamente da Caveira. Desde aquele ano, o BDM já não seguia mais as ordens de Genilson Lino da Silva, o Perna, líder da Caveira. Este mês, após a prisão de Luciano de Jesus Mota, 24, acusado pela polícia de ser traficante, integrante do BDM e autor de uma chacina que deixou quatro mortos no Engenho Velho da Federação, Nagé despontou nas manchetes novamente. 

Luciano, mais conhecido como Benga, teria liderado a chacina motivada por uma disputa interna do próprio BDM, em 21 de julho de 2017. Benga e outras seis pessoas mataram quatro integrantes da facção por deixar de comprar drogas na região comandada por ele. Logo após esse crie, Benga fugiu justamente para Nagé. 

Entenda a ordem dos acontecimentosAntes do dia 30 de julho – Não se sabe quando, exatamente, mas o cachorro da família foi o primeiro a morrer. O animal veio a óbito poucos dias antes da morte da primeira criança.  30 de julho – A filha mais velha de Adriane e Jeferson, a pequena Gleysse Santos da Conceição, de 5 anos, morreu após passar mal. Na época, a família chegou a imaginar que ela tinha sido vítima de uma complicação do diabetes. Ela deu entrada em um hospital salivando e com hiperglicemia (excesso de açúcar no sangue). 6 de agosto – Na segunda-feira seguinte, a irmã dela, Ruteh Santos da Conceição, 2, passou mal e foi levada às pressas para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Maragojipe. Ela chegou na unidade desfalecida e morreu no mesmo dia. 11 de agosto – Em seu Facebook, Adriane fez um desabafo. “Amores❤. Eu lutarei para chegar no Céu, para abraçar vocês. #NaEternidadeVouTeVer. #GleysseKelly???? #Ruteh???? (sic)”, escreveu.  13 de agosto – Também numa segunda-feira, Adriane passa mal durante o culto e é levada ao hospital. Ela morreu já na unidade de saúde.  17 de agosto – Responsável pela investigação do caso, o delegado Marcos Veloso solicitou a exumação do corpo de Gleysse. Como foi a primeira a morrer, ela acabou sendo enterrada por "morte natural”. 5 de setembro – Depois de uma decisão favorável da Justiça, o Departamento de Polícia Técnica (DPT) realizou a exumação dos corpos de Gleysse e Ruteh. 14 de setembro – O juiz Lucas de Andrade Cerqueira Monteiro, substituto da comarca de Maragojipe, assina o deferimento do pedido de busca e apreensão cumprido na residência do casal Elisângela e Valci, em Conceição da Feira.  15 de setembro – Parentes de Adriane e das filhas são ouvidos pela polícia, assim como casal Elisângela e Valci.  20 de setembro - Sete pessoas foram ouvidas pelo delegado Marcos Veloso, numa acareação. No processo, os convocados foram convidados a contar, juntos, suas versões sobre os acontecimentos. 21 de setembro – Mandado de busca e apreensão é cumprido na residência do casal Elisângela e Valci, em Conceição da Feira.  28 de setembro – A decisão que autorizou o cumprimento do mandado de busca é publicada no Diário Oficial de Justiça.