Quantas vezes você já foi estuprada?

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 10 de junho de 2019 às 15:08

- Atualizado há um ano

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Passei parte do domingo jogando no PlayStation, com meu filho. Além de perceber que os controles desses aparelhos evoluíram muito deste o Atari (e que não desenvolvi coordenação motora para manejá-los), acabei me rendendo ao realismo e à complexidade dos jogos que ele curte. Às vezes, eu me afastava um pouquinho, mas voltava pra perguntar "quer ajuda pra passar de fase, filho? Qual é o desafio?". Enquanto não desvendávamos um mistério, o jogo não nos permitia avançar. Ao cair, durante uma escalada, éramos obrigados a voltar à mesma pedra, até que encontrássemos um caminho seguro. Genial esse exercício juntos. Deleite puro e muitas conversas porque na vida é igualim.

"Quer ajuda pra passar dessa fase? Qual é o desafio?" me perguntam livros, pessoas, animais, obras de arte e novas idades repetidas vezes, desde que sou menina. Depois de um tempo, também as viagens, terapias e mesas de bar me ajudaram a dar os passos necessários para que, muitas vezes, eu possa sentir que "estou em um novo lugar". Como esse em que me percebi durante a confusão sobre o jogador e a moça que teria sido estuprada ou não. Daqui, deste lugar onde cheguei depois de muita porrada, lágrima, gargalhadas, gozos, porres, vexames retumbantes, grandes encontros e muitas bestagens, eu me vi perguntando a mim mesma, durante a semana que passou: "quantas vezes você já foi estuprada?".

Olhando com novos filtros, várias. Muitas delas percebidas bem recentemente, depois dos 40, quando, inevitavelmente, a gente "passa de fase". Não pense em cenas de violência explícita nem considere que eu seria capaz de convencer um juiz(a) porque, em todas as vezes, eu estava pra jogo. Tudo na mais perfeita normalidade, mas dessa "normalidade" questionável (e agora, felizmente, questionada) que inclui obrigatoriedades como "se começou acabe", "você vai me deixar assim?" e, entre muitas outras coisas, o "ele vai procurar na rua, se não achar em casa". Hoje eu percebo que muitas vezes achei que era desejo o meu medo de ameaças.

Nenhuma novidade. É ainda muito nisso que a vida sexual feminina se pauta: dar conta de demanda alheia, enlouquecer seu homem na cama, se depilar pensando em como ele gostaria, fingir orgasmos ruidosos para que ele se sinta poderoso (e "acabe logo, vá"). Modos e costumes que nos estupram, todos os dias. Literalmente (precisamos mesmo apliar o sentido dessa palavra) e metaforicamente, na vigência dos nossos romances fofos e exaustivamente publicados. Estamos presas nessa fase, parece. Voltando repetidas vezes ao ponto onde precisamos pensar e resolver, definitivamente, o enigma da submissão em nossa sexualidade.

(Por acaso algum dia você se importou em saber se ela tinha vontade ou não? E se tinha e transou, você tem a certeza de que foi uma coisa maior para dois? Você leu em seu rosto o gosto, o fogo, o gozo da festa?)

(Gonzaguinha em Pontos de Interrogação)