Quarentena fértil: como bebês trouxeram alegrias e desafios para casais na pandemia

CORREIO conta histórias de como crianças alimentaram o amor familiar

  • Foto do(a) author(a) Hilza Cordeiro
  • Hilza Cordeiro

Publicado em 13 de junho de 2021 às 07:54

- Atualizado há um ano

. Crédito: .
Miguel e Lucca por Foto: Acervo familiar cedido ao CORREIO

Nem todo mundo brigou e se separou por causa do isolamento prolongado a dois. Há meios e finais felizes. Tem muita relação que ficou mais profunda, tem gente namorando mais, amando mais e até aumentando a família. Apesar do pandemônio coletivo, a vida segue, inevitavelmente, e o amor —  com seus frutos — continua sendo, entre tantas coisas, o melhor remédio contra o medo. Além de, claro, o mais eficaz veneno antimonotonia.

O jovem casal Mayanna e Jackson até fica confuso ao tentar desvendar como teria sido o acontecimento chamado Lucca. Será que foi por mais oportunidades de namorar? Obra da rotina? Sei lá, um apaixonamento? “Quem é que sabe? A gente só sabe que veio”, gargalha ela. Os dois sempre pensavam em dar um irmãozinho para Miguel, o primogênito de três anos, só não programaram que isso fosse acontecer no meio de uma pandemia.

Lucca estava nos planos, mas chegou com um errinho de cálculo em relação à melhor data. A mãe brinca que o bebê foi “um acidente de percurso”, que, de início, deu um susto, mas não demorou a ser ressignificado. Com tantos fatos terríveis, 2020 e 2021 não são os anos mais seguros para vir ao mundo, mas muitas famílias conseguem perceber a beleza de receber a benção da vida nesse cenário.

[[galeria]]

Com mais tempo livre para dedicar ao afeto e acompanhar o encanto das primeiras reações do bebê, casais encontraram abrigo contra o tempo ruim na cumplicidade do amor romântico, assim como no exercício da maternidade e paternidade.

De modo geral, a decisão de ter filhos ou não foi atravessada pela pandemia. Em 2020, 181.146 crianças nasceram na Bahia, segundo o Portal da Transparência do Registro Civil. Em 2019, antes da pandemia, haviam sido 191.663 nascimentos, 5% a mais. Em todo o Brasil, foram 2,6 milhões de registros em cartórios em 2020, 168 mil a menos do que em 2019. Em 2021, já são 1,1 milhão no país e 79 mil na Bahia.

Os números revelam que, apesar de tudo, alguns lares tiveram um aumento de ‘fertilidade’. Houve famílias que se permitiram viver o inexplicável em uma das eras mais inexplicáveis da história. E as esperanças continuam a chegar: ao todo, 5 crianças já nasceram com imunidade natural ao coronavírus na Bahia porque suas mães foram vacinadas ou tiveram covid-19.

Quando a suspeita de gravidez de Mayanna foi confirmada pelo ultrassom que apontava 5 meses de gestação, ela só pensava em como Miguel iria reagir. Temia que ele não fosse se acostumar ao novo irmão, mas reações lindas aconteceram. 

“Todo mundo falava que ele iria sentir muito ciúmes de Lucca porque ele é uma criança que não se enturma. E sabe o que aconteceu? Ele ciuma é de quem chega perto de Lucca, não quer que ninguém toque. Miguel não pode ver um vaso de álcool que quer passar na mão, nos brinquedos”, conta ela.

Se, por um lado, os pais não puderam tanto compartilhar a gravidez e a chegada do bebê como e com quem queriam, por outro, tiveram melhor privacidade e calmaria para curti-lo. Apesar de ser um período adverso, houve lá os seus prazeres. May diz que não pode contar com toda a ajuda que normalmente teria a seu dispor, mas foi bom não ter que ouvir buzinas de carro e motos de visitantes tocando na frente de casa. Foi mais gostoso colocar o neném para dormir e ela pode descansar melhor no puerpério. 

A mamãe também pode contar com a liberdade de ficar desarrumada, sem vestir roupa especial para receber gente e, claro, se livrou do desconforto do sutiã e deixou a mama livre, ao querer de Lucca. 

Claro, nem tudo é leve e lindo. A falta de uma rede de atenção e proteção dificulta prestar atenção a todos os prazeres que um bebê proporciona, lembra Juliana Prates, professora de Psicologia da Ufba e doutora em Estudos da Criança. Nem todo mundo vai se contaminar com o sentimento de bem-estar geral. A gravidez sempre é um momento singular na vida de uma família, há uma mudança importante nos papéis que cada um desempenha e gera emoções diversas — como ansiedade, alegria, expectativas. Luquinhas (Foto: Acervo familiar cedido ao CORREIO) Um tesouro guardado em casa Havia uma enorme tensão no hospital no dia em que Luquinhas veio ao mundo. A família ouvia que ele estava previsto para chegar no fim de fevereiro, mas o neném resolveu brincar de vem-não-vem e mexeu com as emoções do pai, o veterinário Lucas Pimentel, de 44 anos.

Lucas se recorda de que já havia casos confirmados de coronavírus no país e chorava praticamente dia sim, dia não, com medo de que algo acontecesse com a esposa e o bebê. Na semana passada, confirmou-se que a preocupação dele tem fundamento: a infecção pelo Sars-CoV-2 já é a principal causa de morte materna no Brasil, segundo dados da Fiocruz.

Luquinhas chegou em data simbólica, no dia 14 de março de 2020, véspera dos anúncios de fechamento de quase tudo na Bahia. Ninguém pode visitá-los.

“Estudei infectologia na faculdade e, em 2007, um professor meu já falava que a pandemia Z iria chegar, que a pandemia Y iria chegar. Os veterinários já alertavam sobre isso. Pensava-se que poderia ser em 2014, mas veio justamente no ano em que meu primeiro filho nasceu. Ele é o primeiro neto das duas partes da família, então, tinha tudo para ser paparicado, mas é um tempo horrível”, lamenta.

Exercendo a paternidade pela primeira vez depois dos 40 anos, Lucas sonhava muito com esse momento e se autodefine como “pai tardio”. O veterinário se entristece ao ver sua criança crescendo em casa, sem saber muito o que há além da porta. O lado bom é poder observar de perto cada aprendizado, cada passinho nessa jornada rápida do crescimento nos primeiros meses de vida, afinal, poder concentrar-se no amor e na beleza de formar uma família é também uma forma de se distrair e resistir aos tempos.

Juliana Prates faz uma observação interessante: essas mudanças do primeiro ano do bebê são muito intensas e, a seu ver, isso dá outra percepção de tempo.

"Na pandemia, estamos com a percepção do tempo bastante atrapalhada. Podemos não dar conta de que dia ou mês estamos, todos parecem muito iguais, mas em contato com o bebê isso muda completamente. A cada nova semana ou mês, é uma conquista diferente. Sorrir, balbuciar, erguer a cabeça, pegar objetos, descobrir o próprio pé, engatinhar... Enfim, pequenas grandes conquistas que podem ser absolutamente fascinantes", nota. Lucas, Diana e Luquinhas (Foto: Acervo familiar cedido ao CORREIO) Um novo elo Também mãe de uma criança, a estudante de enfermagem Amanda Waydy, 24, descobriu que estava grávida de Clara logo após o Carnaval. A neném chegou de surpresa e Waydy estava com três meses de gestação quando quase tudo foi fechado no país. Na época, outras dificuldades se somaram e foi natural eles serem tomados por uma angústia.

Havia muita expectativa porque o filho mais velho, de 6 anos, estava prestes a entrar no primeiro ano da escolinha. O marido dela, bancário, morava e trabalhava em outra cidade e, para dar conta de tudo quase sozinha, ela precisou frear um tanto a carreira de estudo e trabalho.

“Eu dei uma surtadinha porque foi uma surpresa, né? Clara veio de enxerida. Meu esposo queria há muito tempo, mas eu não. Eu chorei, foi uma agonia. Além de tudo, meu parto foi antecipado e meu marido ainda estava morando fora. Na minha gravidez, a gente ficou bem afastado, foi bem difícil para nós”, lembra.

Os encontros eram a cada 15 dias, quando ele conseguia viajar até a cidade dela. A distância era minimizada com chamadas de vídeo, por volta das 18h, quando ele chegava do banco e, depois novamente, antes de dormir. 

Eram nessas viagens quinzenais que eles tinham a oportunidade de exercer a parceria e sentar para, juntos, escolherem enxoval, roupinhas, móveis. Quase tudo foi comprado pela internet para evitar o risco de ir à rua. 

Diferente da gravidez do seu primeiro filho, quando muita gente ao redor queria dar pitaco, Clara veio ao mundo com serenidade. Amanda reflete, inclusive que, apesar da pandemia, a bebê chegou em um momento até melhor na história do casal, quando comparada com a época de Nicolas, quando ela tinha 17 anos e ainda cursava o ensino médio.   A espera por Clarinha (Foto: Acervo familiar cedido ao CORREIO) Felizmente, eles estavam com melhor estabilidade financeira e maturidade no relacionamento. Hoje, o marido dela vai e volta todos os dias, gasta cerca de 5h de viagem entre uma cidade e outra, além da jornada de trabalho para poder estar juntinho da família. 

“Meu marido se acaba de dar risada dizendo que o amor renasceu porque, olha, sou muito bruta e, na gravidez, não me reconheci. Como ele saía de madrugada, eu ficava em casa me acabando de chorar porque ele estava indo embora, era muita saudade e medo. Ele diz que eu mudei da água para o vinho. Eu era muito rígida, chorar era a maior dificuldade do mundo e, depois que engravidamos dela, a gente se reaproximou bem”, recorda com carinho.

Os pais e mães da pandemia terão memórias que os marcarão por toda a vida. Um filho que nasceu em tempos duros é certamente um marco temporal e uma grande história para se contar.  Clarinha (Foto: Acervo familiar cedido ao CORREIO) As motivações Independente da pandemia, não há uma resposta única para o que motiva casais a terem filhos. As pessoas são de diversas origens, classes sociais e raças. A psicóloga clínica Lívia Vasconcelos, mestre em Psicossociologia pela Ufba, aponta que, tradicionalmente, há uma visão de que só um filho consolida um casamento, mas também não é uma regra, não é que todos os casais pensem isso.

É mais pela vontade de ter uma descendência, de manter sua identidade familiar no mundo, de destinar afeto a um ser. Tem motivações inconscientes que ninguém sabe explicar, mas a família é uma continuidade de si mesmo.

Lívia observa que a concepção e o nascimento de crianças tornaram-se espetáculos, com super festas mensais que romantizam essa chegada. Os chás de fraldas não são só para reunir fraldas, mas são, principalmente, um momento de socializar, de coletivizar esse nascimento porque é uma experiência positiva para os cuidadores da criança e, por isso, estes eventos fazem tanta falta.

“É bom que essa criança tenha mais referências do que só o seu próprio núcleo familiar. É saudável ter uma comunidade que diz: eu que dei essa roupinha, eu que ensinei a rodar bicicleta, eu que dei o primeiro banho”, diz.

Nestes tempos, o vínculo das crianças com seus cuidadores ficou mais forte. Todo mundo passou a ver menos pessoas e a psicóloga Juliana Prates destaca que, por causa do isolamento social, a família ganha mais importância e centralidade. "Considero que estar cercada de bebês e crianças é um sinal de que a vida segue seu curso, apesar das condições tenebrosas a que estamos submetidos", completa.