Que venha o mar da revolução

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  • Paulo Sales

Publicado em 21 de dezembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Tento esquecer o que estamos vivendo: a doença, o isolamento de meses, os que perderam a luta e os que choram por eles. Tento esquecer os tipos abjetos e tolos que não cessam de despejar barbaridades sobre nossas mentes. Tento esquecer que o fundo do poço não existe e que continuamos caindo. Afinal, estamos chegando a mais um fim de ano e o que se espera são mensagens de paz e votos de um feliz 2021. Portanto, não sou eu que vou jogar mais pessimismo e desesperança sobre todos nós. Ou vou?

Enquanto escrevo, ouço o barulho de uma motosserra arrancando galhos de uma árvore próxima. É um dos sons mais terríveis produzidos pelo homem, até pelo que representa de devastador. Os galhos, fartos e pesados, caem sobre o caminhão, levando provavelmente ninhos e ovos de aves. Para abafar o ruído, ouço Gilberto Gil cantando A Paz, uma canção que costuma me acalentar e levar para longe os maus sentimentos. Escuto os versos: “Eu vim /Vim parar na beira do cais /Onde a estrada chegou ao fim/Onde o fim da tarde é lilás /Onde o mar arrebenta em mim /O lamento de tantos ‘ais’”.

Há algo arrebentando em mim e não sei bem o que é, que lamentos, que tantos ‘ais’ são esses que provocam essa sensação. “Eu pensei em mim, eu pensei em ti, eu chorei por nós”. Então me dou conta de que não há paz possível. Como no verso de Sylvia Plath, sempre fui habitado por um grito. Algo que esperneia, que se contrai e se expande em algum ponto indefinido no tórax. Esse grito me acompanha desde a inconsciência aquosa. Nesses momentos, é como se o ar fosse sólido. Como se eu tentasse aspirar concreto. Os pulmões se retraem e os demais órgãos acusam o golpe, trabalhando em dobro.

Mas avanço. Lentamente, como se puxado para trás por cordas grossas de navio, avanço. É o que me resta. Até porque tenho bons motivos para avançar. Aguardo ansioso o momento de andar todos os dias na praia, junto com minhas mulheres e meu pequeno filho peludo. Vendo a noite pôr seu ovo brilhante sobre a água, vendo o fim da tarde lilás. Simplesmente abraçar a maravilha da vida no que ela tem de mais prosaico. Há algo no mar que me purifica, que me redime. Passar horas como um cetáceo ordinário, imerso naquela tranquilidade, levando para longe as impurezas da mente, a exaustão, a perplexidade.

O fim do ano se aproxima. Mais um. Desta vez com abraços contidos, festas esvaziadas, mensagens de vídeo repletas de sorrisos de quem está distante ou bem perto. É um epílogo condizente com o espírito do ano que vivemos: sombrio, enfermo, rarefeito de lucidez. Um ano para não esquecer nunca. Creio que merecemos algo melhor em 2021. Talvez seja o momento da guinada, de lançar por terra os tipos abjetos e tolos, como galhos podres, e construir algo minimamente parecido com uma nação. Enfrentar o doce delírio das ruas. Fazer um mar da revolução, como diria Gil em sua linda canção. Esperemos.

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Nas próximas duas semanas esta coluna entrará em breve repouso. Dia 11/01 estamos de volta.