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Recordações encalhadas

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 19 de dezembro de 2022 às 05:03

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Hoje mais cedo, ao passear no parque com Pudim, vi um homem cavando um buraco na areia com uma pá para enterrar um gato. Havia mais exaustão do que efetivamente tristeza no seu semblante. O corpo do animal repousava ao lado, em uma caixa. Vi de relance: era um gato grande, tigrado e bonito. Quando passei de volta, ele estava jogando o gato no buraco. Fez isso em silêncio, com determinação e pragmatismo.

Pensei em meu próprio bicho de estimação que caminhava ali ao meu lado. E lamentei a vida breve que terá. Ainda é jovem em seus três anos e repleto de uma energia que me encanta. É ele quem me acorda todos os dias, lambendo meu rosto ou meu cotovelo para que levante logo e o leve ao parque. Faço esse pequeno périplo matinal com prazer, observando os pássaros e os peixes na lagoa, trocando breves comentários com meu pequeno filho peludo.

Se tudo der certo, Pudim e eu envelheceremos juntos. Quando ele tiver 10 anos, eu terei 59. Quando tiver 15, talvez o seu limite de vida, terei 64. Seremos então dois velhinhos a andar no parque em passo bem mais lento que o de hoje, recordando os primeiros anos em que caminhávamos por ali. Estranho pensar nesse ponto futuro, por mais que os dias, meses e anos estejam correndo de forma vertiginosa em direção a um porvir desconhecido.

Tento imaginar a sensação de olhar para trás, de lá dessa velhice não tão distante, do mesmo modo que hoje faço com meus 20 ou 30 anos. Converter o presente, com todas as suas dificuldades, frustrações, pequenas alegrias e compensações, em um passado idílico e acolhedor que desperta saudade. Ah, esse sentimento a que só a língua portuguesa consegue dar nome. E que de tempos em tempos nos assalta feito um assombro ou um calafrio.

À medida que prosseguimos, o entulho feito de passado passa a obstruir a nossa visão. Passamos a olhar mais para o retrovisor e menos para o parabrisa. Até que uma hora a estrada dá lugar ao abismo, que nem na cena final do filme Thelma & Louise. No caso delas, havia a alternativa de recuar e encarar o que fizeram antes. Mas a vida não vem equipada com marcha a ré, a não ser através da memória.

Em Lições, seu romance mais recente, Ian McEwan descreve assim a trajetória errática do personagem Roland Baines: “Durante anos, sua vida tinha sido uma longa maré vazante. Ao retroceder, as águas deixavam poças aleatórias de recordações encalhadas”. Como qualquer um de nós, Baines é assombrado pelos episódios que o moldaram, e no seu caso eles permanecem fazendo estragos no presente.

Não seríamos os mesmos sem essas “recordações encalhadas”. Em algum momento, também nadamos na baixa-mar, que tanto pode nos lançar ao oceano profundo quanto permitir que coloquemos os pés na areia. Eu sou assim, repleto de reminiscências aprisionadas em poças rasas. Sou as perdas que tive. Sou o afeto que recebi e que transmito. Sou a minha visão de mundo e as coisas que vi. Só não sei ainda aonde tudo isso me leva: se para o alto mar ou para a beira da praia.

É mais ou menos o que Borges escreveu certa vez, só que de modo muito mais inspirado: “Somos todo o passado, somos nosso sangue, somos as pessoas que vimos morrer, somos os livros que nos melhoraram, somos gratamente os outros”. Do alto de minha velhice futura, caminhando no parque com meu pequeno ancião de quatro patas, espero meditar sobre tudo isso com uma valorosa sensação de ternura e dever cumprido.

*

Há exatamente um ano, escrevi aqui neste mesmo espaço: “Creio que ainda penaremos muito em 2022. Sofreremos tudo que ainda é preciso padecer até escorraçarmos de vez o mal do nosso país. O estrago levará décadas para ser mitigado e por fim reparado. Mas é como se já houvesse um clarão da alvorada despontando lá longe. Expulsando a sordidez, o cinismo, a calhordice, a ignorância orgulhosa de si mesma.”

Estava certo: penamos muito nos últimos doze meses, mas também vislumbramos um clarão da alvorada. Hoje o clarão já se converteu em dia claro e conseguimos olhar para frente com alguma esperança e a convicção de que valeu a pena resistir. Que venha 2023!

A coluna se dedicará a um breve repouso e volta no dia 9 de janeiro. Feliz ano novo para todos nós.